Clipping - Fila para tratar câncer passa do limite da lei
Extra / Cidade
15/08/2018
Pacientes já diagnosticados aguardam a 1ª consulta no estado, que tem oferta cada vez menor
Há cerca de dois meses, Ricardo Batista de Souza, de 68
anos, procurou a Clínica da Família de Irajá, na Zona Norte, com fortes dores.
O ajudante de caminhão aposentado, que fumou por longos anos, recebeu do médico
a notícia de que precisava se consultar com um oncologista e, para isso, foi
incluído no Sistema Estadual de Regulação (SER). Tudo indicava ser um câncer de
pulmão, e o tratamento deveria ser imediato. Mas não foi. No último sábado, o
idoso passou mal em casa e morreu. Assim como Ricardo, outras 1.012 pessoas
estão inscritas na fila de espera por uma consulta de primeira vez com um
oncologista. E, a cada dia, elas se aproximam do triste desfecho do morador de
Irajá.
Enquanto os pacientes aguardam, a oferta de consultas de
primeira vez com oncologistas na rede federal do Rio — responsável pelo
tratamento de câncer — caiu cerca de 48% de 2016 para cá, de acordo com
levantamento feito pela Defensoria Pública da União (DPU). Em muitas
especialidades, houve o bloqueio total de vagas no SER para consultas em todo o
estado.
— Não conseguimos nem confirmar o diagnóstico, mas, pelo
que nos foi dito, ele tinha, sim, câncer — conta a aposentada Eunice Mendes de
Oliveira, de 72 anos, prima de Ricardo, que chegou a procurar a Defensoria
Pública na tentativa de solucionar o problema do parente.
A pesquisa, feita com dados do SER do último dia 10 de
agosto, revela que, para os serviços que tratam tumores urológicos, como o de
próstata, 410 pacientes esperavam a chance de inciar a luta contra a doença. O
primeiro da fila foi inserido no sistema em 1º de junho, há 76 dias,
descumprindo a Lei dos 60 dias, que determina o intervalo máximo de tempo entre
o diagnóstico e o início do tratamento. A legislação, aliás, é violada em
outras três especialidades: mastologia (mama), cirurgia torácica oncológica e
câncer de tireoide.
A consequência mais perversa dessa discrepância (entre a
fila de espera a redução da oferta de vagas) é a retirada do tempo de cura do
paciente, afrontando toda uma estruturação de princípios, direitos e deveres
constitucionais, além da conhecida Lei dos 60 dias — diz o defensor público
federal Daniel Macedo.
REDE
FEDERAL
INCA
Na comparação entre 2016 e 2017, houve redução na oferta de cirurgia torácica em 27%, de 4% nas cirurgias de lesão impalpável de mama e 2% nas relacionadas a tumores ósseo e conectivo adulto.
HOSPITAL
DO ANDARAÍ
À exceção da cirurgia geral, houve decréscimo para todas as demais especialidades quando feita a comparação entre 2016 e 2017.
HOSPITAL
DE BONSUCESSO
Suspendeu a oferta de vagas em 2017 para ginecologia oncológica, mastologia e urologia. Reduziu a oferta dos recursos de cabeça e pescoço em 93% e de câncer de tireoide em 11%.
CARDOSO
FONTES
Diminuiu toda a sua oferta de vagas oncológicas em 2017 em comparação a 2016. Suspendeu as vagas de ginecologia oncológica.
HOSPITAL
DE IPANEMA
Em 2017, teve um saldo positivo em comparação a 2016. Mas
deixou de oferecer vagas em cirurgia geral.
HOSPITAL DA LAGOA
Entre 2016 e 2017, reduziu a oferta de todos os recursos.
Parou de oferecer vagas para cirurgia torácica, urologia e coloproctologia em
2017.
SERVIDORES DO ESTADO
Único da rede federal que oferece ao SER consulta de
oncologia pediátrica, mas reduziu essa oferta em 18%.
INTO
Em 2017, reduziu em 9% a oferta de vagas para casos de
tumores ósseos infantil.
Audiência na Justiça
Diante desse quadro, a DPU pediu ao juízo da 4ª Vara
Federal do Rio de Janeiro uma audiência especial, com a intimação do ministro
da Saúde, do secretário de Assistência à Saúde e de todos os diretores dos seis
hospitais e dois institutos da rede federal do Rio que prestam serviço de
oncologia. A ação, de acordo com Daniel Macedo, busca obrigar as autoridades a
apresentarem um plano para a solução da crise no tratamento oncológico no
estado.
— É preciso colocar todos os gestores perante o Judiciário
federal para tentar finalmente reverter essa situação de descalabro — defende o
defensor.
Segundo Macedo, a DPU tem denunciado a falta de leitos,
profissionais, insumos básicos e medicamentos na rede federal do Rio.
A mastologista Sandra Gioia, do Instituto Nacional de
Câncer (Inca), que este ano realizou um projeto de navegação de pacientes com
câncer de mama no Rio Imagem para acelerar a chegada das mulheres ao
tratamento, confirma o quadro desolador:
Não tem mais profissionais para atender. Está
insustentável. A consulta de primeira vez no Inca está indo para quase três
meses. Pacientes com câncer de mama estão esperando cinco meses para operar no
Inca. As pessoas não têm conhecimento para entender que isso é tempo demais. Do
que adianta fazer diagnóstico precoce se só operar tumores em estágio avançado?
— questiona a médica.
Mais doentes para menos vagas
Em uma comparação entre as médias de ofertas e solicitações
de vagas no Sistema Estadual de Regulação, observouse que em 13 das 16
especialidades em oncologia houve aumento das solicitações de 8% a 40%. Já os
dados que apresentam as médias de ofertas de vagas no mesmo período mostram
reduções que variam de 4% a 53%. Ou seja, apesar do aumento da procura pelo tratamento
oncológico, o que se verifica é a crescente diminuição na oferta de vagas.
Esta discrepância entre a necessidade da população e aquilo
que o sistema de saúde tem ofertado sugere a causa do aumento em 43,1% dos
mandados judiciais relacionados a tratamento oncológico entre os anos de 2016 e
2017. Os números ainda indicam que a situação tende a se agravar, uma vez que,
até o último dia 30 de julho, já foram solicitadas 39 liminares para tratamento
de câncer, sendo que boa parte delas não foi cumprida.
— Há pacientes que aguardam de um a dois meses para
conseguir a primeira consulta numa clínica da família e mais quatro meses pelo
oncologista — diz Macedo.
Outro problema apontado são filas paralelas, com vagas não
disponibilizadas no SER. É o caso da pediatria no Inca. O instituto informou
que os casos de leucemia são referenciados diretamente para internação e os
casos ambulatoriais têm livre acesso.
Sobre a diminuição em 27% de vagas para cirurgia torácica,
o Inca afirmou que “historicamente sempre houve mais vagas que pacientes” e
“redução reflete somente a adequação da oferta à demanda”. No entanto, 34
pacientes aguardam na fila do SER, e o primeiro espera há 76 dias. Sobre
consultas para cirurgia de lesão impalpável da mama e para tumores ósseos e conectivos,
o Inca diz que a oferta se manteve estável.
O Departamento de Gestão Hospitalar do Ministério da Saúde
no Rio afirmou que vai avaliar os dados da DPU.
‘Na condição dele, era para ser
internado’
EUNICE
DE OLIVEIRA Aposentada, 72 anos, prima de Ricardo de Souza
Meu primo fumava muito, mas, até então, não tinha problemas
mais graves de saúde. Na condição em que ele estava, era para ter sido
internado para checar o câncer e fazer o acompanhamento adequado. Em vez disso,
mesmo já não andando direito, quase sem dormir, com muita dor, precisou ir por
conta própria ao Hospital de Acari e nem sequer foi atendido! Acho que, com os
cuidados corretos, a história poderia ter um desfecho diferente.