Clipping - Má distribuição atrapalha acesso a médicos
O Globo / Sociedade
21/03/2018
Conselho Federal de Medicina aponta aumento de profissionais em atividade
O Brasil vem formando cada vez mais médicos, o que fez
disparar o número de profissionais em atividade no país e aproximar a proporção
com relação à população geral dos níveis de nações desenvolvidas. Mas as
desigualdades regionais na distribuição de médicos seguem profundas, o que
prejudica ou mesmo impede o acesso de boa parte dos brasileiros a serviços
básicos de saúde. O diagnóstico é um dos muitos proporcionados pela pesquisa
“Demografia Médica 2018”, realizada pela Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo (USP) com patrocínio do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do
Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e divulgada ontem.
De acordo com o levantamento, em janeiro de 2018 havia
452.801 médicos registrados no país. São quase 90 mil a mais que os
contabilizados em 2010, num aumento de cerca de 24% no período, e mais que o
dobro dos que atuavam no Brasil em 1990. Com isso, a razão de médicos para cada
mil habitantes também avançou, chegando a 2,18 neste ano. O número coloca o
país num patamar próximo de nações que também contam com sistemas públicos
universais de saúde, como Canadá e Reino Unido, com 2,7 e 2,8 médicos por mil habitantes,
respectivamente — o que não quer dizer, no entanto, que o atendimento por esses
profissionais também está se tornando similar, destaca Mário Scheffer,
professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da
USP que coordenou o trabalho.
Tivemos um aumento quantitativo expressivo no número de
médicos no Brasil, principalmente nos últimos anos — diz. — Mas o que
percebemos é que essa alta, apesar de também ser importante, não significou uma
maior presença de médicos em alguns locais, que ainda hoje não contam com a
atuação de profissionais de saúde, mas sim uma maior concentração deles nos
mesmos lugares. Assim, no caso do Brasil, essa razão não quer dizer que a
população tem um melhor e maior acesso a médicos como em alguns países
desenvolvidos.
—
‘REFORMAS PROFUNDAS’
Um exemplo radical disso é o Amazonas. No estado, 93,1% dos
4.844 médicos registrados estão na capital, Manaus, cabendo aos 6,9% restantes,
ou apenas 336, atender 62 municípios espalhados por uma área de 1,57 milhão de
quilômetros quadrados. O levantamento não inclui os cerca de 8,5 mil
profissionais estrangeiros que fazem parte do Programa Mais Médicos, já que
eles não têm registros nos conselhos regionais.
Ainda assim, segundo Scheffer, o problema na distribuição
dos profissionais não se limita a grotões e locais de difícil acesso como o
sertão nordestino ou a Amazônia, atingindo mesmo a periferia de grandes cidades
e capitais de estados do Sul e Sudeste onde a razão médicos por mil habitantes
atinge e até ultrapassa a observada em países ricos, como o Rio de Janeiro,
onde ela fica em 3,55. Outro ponto que o levantamento permite apenas entrever é
o que ele chama de desigualdades dentro do próprio sistema de saúde. E,
novamente, o Rio de Janeiro é um exemplo disso.
— Mesmo em locais onde existem proporcionalmente muitos
médicos, como o Rio, faltam profissionais em várias situações e serviços, como
prontossocorros — conta.
Pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da
Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e responsável por alguns dos primeiros
estudos a traçar um perfil da comunidade de profissionais de saúde brasileira,
publicados no fim dos anos 1990, Maria Helena Machado afirma que a solução para
o problema da má distribuição deles pelo país deve passar por reformas
profundas, não só no sistema de saúde como no político.
— Num país com as dimensões e diferenças na densidade
demográfica como o Brasil, um número como essa razão de médicos por habitantes
não quer dizer praticamente nada — avalia. — Assim, embora tenhamos um volume
de médicos bem razoável, ainda precisamos estudar e implementar políticas que
possam atender às demandas específicas de nosso país, que não são poucas.
Precisamos ver o Brasil da forma desigual que ele é para diminuir essas
desigualdades.
Segundo Maria Helena, a questão começa pela profusão de
municípios no país, hoje 5.570, cerca do dobro dos que existiam nos anos 1960.
— A grande maioria desses municípios, 88%, tem até 50 mil
habitantes, sem a mínima condição de sustentarem sozinhos sistemas de saúde,
educacional e de assistência social de forma adequada — critica. — Isso os
deixa totalmente dependentes das esferas federal e estadual. Então, o mais
salutar seria, antes de tudo, uma redefinição dos municípios brasileiros, uma
reestruturação geográfica que os reagrupe por parâmetros de sustentabilidade.
Maria Helena, no entanto, reconhece que a briga política
necessária para que isso aconteça é praticamente impossível de ser pautada e
ainda mais difícil de ser vencida. Assim, a saída seria buscar formas de
otimizar o uso dos recursos da saúde, tanto em termos físicos quanto humanos.
No caso dos primeiros, uma delas é a criação de “consórcios” regionais de
saúde, com vários municípios se unindo num atendimento centralizado de seus
habitantes, o que permitiria um investimento conjunto em infraestrutura e
equipamentos. Já no dos profissionais de saúde — que além dos médicos ela
inclui enfermeiros, farmacêuticos e odontólogos —, elas passam pelo
estabelecimento de políticas de Estado para suas carreiras.
É como se fosse um guarda-chuva de proteção maior do Estado
para esses profissionais para que eles não acabem se sentindo reféns do
prefeito do momento — aponta. — Essas políticas permitiriam ao profissional
vislumbrar que não está solto nem só, estimulando sua fixação numa região.
Assim, um médico que decida seguir uma carreira disponível num estado pode
primeiro percorrer municípios de baixa densidade populacional e capacidade
assistencial, mas sabendo que em algum momento, se precisar, terá apoio e condições
as quais possa recorrer para seus pacientes, como equipamentos e estruturas
para atendimentos mais complexos, e com o tempo, se quiser, também “migrar”
para municípios de maior porte no estado.
—
MAIS VAGAS EM ESCOLAS
Ainda segundo Maria Helena, o Brasil tem todas as condições
básicas de dar esse “salto” na saúde pública, tanto por já ter um sistema
universal de saúde bem estabelecido, o SUS, quanto pelo “rejuvenescimento” de
sua comunidade médica, inclusive detectado pelo levantamento. De acordo com a
pesquisa, aqui a idade média dos médicos atualmente é de 45,4 anos, número que
vem caindo e deve continuar a cair com a ampliação das vagas nas escolas de
medicina — 104 delas abertas só entre 2013 e 2017, num total de quase 30 mil
vagas em 289 cursos em todo país — e a chegada ao mercado desses profissionais.
— O SUS deve tomar para si a responsabilidade de dar essas
condições gerais de carreira e de trabalho para os profissionais de saúde —
defende. — As mulheres são uma das principais razões por trás desse
rejuvenescimento da comunidade médica brasileira, e elas tendem a querer
trabalhar num emprego só ou em menos lugares, se dedicar com mais afinco a uma
população e assegurar uma maior estabilidade profissional. Assim, temos só aí
uma grande população de profissionais para quem esses tipos de políticas de
carreiras de Estado para a saúde seriam muito bem recebidas, atendendo tanto os
desejos dos profissionais quanto as necessidades do país. Tudo isso representa
uma oportunidade que o Estado não deveria perder e uma necessidade para todos
nós que precisamos e usamos os serviços públicos de saúde.
Em janeiro deste ano havia 452.801 médicos registrados no
país, quase 90 mil a mais que em 2010