Clipping - Drama invisível
O Globo / Sociedade
21/12/2017
Um em cada dez estupros registrados pelo sistema de saúde é contra meninos ou homens
BRASÍLIA- De cada dez estupros registrados pelo sistema
público de saúde, um é contra vítima do sexo masculino, e 62,5% dos agredidos
têm até 9 anos de idade. Dados inéditos do Ministério da Saúde apontam o
tamanho do drama ainda invisível da violência sexual contra meninos. Em 2016,
foram notificados 2.491 casos de homens atendidos — média de sete por dia. O
número é 79% superior às 1.392 ocorrências de 2011, quando o registro das
agressões passou a ser compulsório no SUS.
As informações oficiais traçam um perfil ainda
mais sombrio: em 36,6% dos casos, há histórico de repetição, 57,3% das
violações ocorreram em casa, e os perpetradores mais comuns são amigos ou
conhecidos (37%) e familiares (21%). Fenômeno comum da violência sexual, a
subnotificação é ainda mais elevada no caso dos meninos abusados que no das
meninas, afirmam profissionais que lidam com as vítimas ouvidos pelo GLOBO.
Eles foram unânimes em apontar a cultura machista como o maior
obstáculo para romper esse tipo de violação. Diretora do Departamento de
Doenças e Agravos Não-Transmissíveis do Ministério da Saúde, Maria de Fátima
Marinho afirma que o aumento dos casos pode ser resultado, em parte, da
melhoria no sistema de notificação nos últimos anos, mas ela não descarta um
salto real na violência. O mais grave, segundo a diretora, é o silêncio em
torno do assunto:
— O medo do estigma pesa para todos. Mas as meninas são
mais facilmente encaradas como vítimas, enquanto os meninos têm a masculinidade
colocada em dúvida. Para muitas famílias, isso é mais importante que a própria
violência.
Ao analisar os dados de repetição da violência detectada
nos hospitais e o perfil das vítimas, Maria de Fátima faz um diagnóstico grave
da situação:
— As crianças ficam prisioneiras da violência. Como vão
fugir disso se a maioria não tem nem 9 anos de idade e sofre a agressão dentro
de casa? A rede de proteção, formada pela família, pela escola, pelos conselhos
tutelares, está falhando. Nem sempre os meninos vão chegar ao hospital —
lamenta ela.
Antes mesmo do fantasma da suposta homossexualidade, que
leva as próprias vítimas a não buscarem ajuda e influencia também a reação das
famílias, um outro fator do imaginário machista coloca os meninos em situação
vulnerável: a percepção de que eles têm o dever de se autoproteger. A decepção
consigo mesmo, que leva à culpa, é frequentemente revelada na sala de
depoimentos especiais de uma delegacia de proteção à criança de Brasília.
— Os meninos têm dificuldade de compreender que aquilo é uma agressão e se questionam se precisam mesmo contar ou se deveriam resolver sozinhos. É muito comum falarem: “Eu tinha que ter chutado ele, ter dado um murro” — conta a agente policial Juliana Amorim.
Os efeitos da violação sexual nos meninos tendem a ser mais
extensos, até no aspecto físico, do que nas meninas, aponta a psicóloga
Fernanda Falcomer, que chefia o núcleo de combate à violência da Secretaria de
Saúde do Distrito Federal:
— Com a menina, há outros componentes sexuais e nem sempre
a revelação ou desconfiança de alguém demora tanto. Com os meninos, evolui mais
rápido para uma tentativa de conjunção anal. Recebemos casos mais graves.
O dano mental, segundo Fernanda, depende basicamente de
três fatores: duração do abuso, grau de vínculo com o abusador e uso ou não de
violência. As consequências para as vítimas variam, como ansiedade, estresse
pós-traumático, depressão, dificuldade de se relacionar e até abuso de álcool
ou drogas.
Perla Ribeiro, subsecretária da Secretaria da Criança do
Distrito Federal, diz ser necessário trabalhar a educação sexual desde a
infância, dentro do entendimento de cada faixa etária. Com isso, diz ela, a
criança conseguirá identificar a pessoa de confiança a quem poderá recorrer,
além de detectar situações suspeitas.
— Estudos apontam que crianças que conhecem o seu próprio
corpo, que recebem explicações sobre como ele funciona, dentro dos limites de
idade, conseguem se proteger mais. Até para identificar a diferença entre
carinho e contato abusivo — aponta Perla. — Apesar dos avanços, ainda existe um
tabu nas famílias e uma onda conservadora na sociedade, o que atrapalha o
combate ao machismo. Vemos claramente uma retração no debate da educação sexual.
Os especialistas apontam que a violência sexual de crianças
não escolhe classe social. Apenas tende a ser menos notificada nos estratos
mais elevados, explica Maria de Fátima, do Ministério da Saúde:
— É um tipo de agressão transversal. O que acontece é que
as classes sociais mais altas não vêm para o serviço público: o hospital, a
escola.