
EMENTA: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – LEI MARIA DA PENHA (LEI N. 11.340/2006) – AÇÃO DIREITA DE INCONSTITUCIONALIDADE – ADI 4.424. AÇÃO PENAL DE NATUREZA PÚBLICA INCONDICIONADA (ART. 66, INCISO II DA LEI DE CONTRAVENÇOES PENAIS). NOTIFICAÇÃO COMPULSÓRIA (LEI Nº 10.778/2003). NOTIFICAÇÃO COMPULSÓRIA DOS CASOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER QUE FOREM ATENDIDOS EM SERVIÇO DE SAÚDE PÚBLICA OU PRIVADA. DEVER LEGAL. PRONTUÁRIO.SIGILO MÉDICO.
1.A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006i que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher teve alguns dos seus artigos tidos como inconstitucionais. O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4424) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) quanto aos artigos 12, inciso I; 16; e 41 da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), no sentido de i) O Ministério Público pode dar início a ação penal sem necessidade de representação da vítima;
2. A Lei n. 10.778, de 24 de novembro de 2003, estabelece a obrigatoriedade de notificação compulsória, no território nacional, no caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. A referida lei menciona claramente a responsabilidade que os profissionais de saúde e instituições têm de comunicar os casos de abuso de que tiverem conhecimento. “A identificação da vítima de violência referida nesta Lei, fora do âmbito dos serviços de saúde, somente poderá efetivar-se, em caráter excepcional, em caso de risco à comunidade ou à vítima, a juízo da autoridade sanitária e com conhecimento prévio da vítima ou do seu responsável. (Parágrafo único, art. 3º).
3. No caso de notificação compulsório prevista na lei acima, o médico deverá comunicar as autoridades competentes, sob o mando do estrito cumprimento dever legal (III, art. 23, CP), quando for caso de risco à comunidade e com conhecimento prévio da vítima ou do seu responsável, com respaldo nos arts. 73 e 74 do Código de Ética Médica.
4. Em analogia ao caso do art. 269 do Código Penal, onde a comunicação de doença é compulsória, a notificação compulsória no caso de violência doméstica prevista no art. 1º. e seguintes da Lei n. 10.778/2003, o dever do médico restringe-se exclusivamente a comunicar tal fato à autoridade competente, sendo proibida a remessa do prontuário médico do paciente” (art. 2º. da Resolução CFM n.º 1.605/2000).
INTERESSADO: F.D.S.
CONSULENTE: Comissão de Departamento Consulta – Presidente: Jesé Freitas Brandão
REFERÊNCIA: A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei Maria da Penha. •Lei nº 10.778, de 24/11/2003 – Lei da Notificação Compulsória dos casos de violência contra a mulher que forem atendidos em serviço de saúde pública ou privada. Sigilo Médico e Dever Legal.
Protocolo CFM n º. 10956/2015
Nota Técnica n º. 3/2016, do Setor Jurídico
(Aprovada em Reunião de Diretoria em 17/05/2016)
I – Relatório
Trata-se de expediente encaminhado pela Comissão de Departamento Consulta do Conselho Federal de Medicina – CFM, na figura do seu 2º. Vice-Presidente, Conselheiro Jesé Freitas Brandão, solicitando análise jurídica do expediente em referência que traz em breve síntese o seguinte questionamento:
“Saudações, Como este Conselho entende que deve o médico agir ao atender uma paciente com sinais de violência doméstica? Deverá o profissional, por força do que determina a lei, comunicar à autoridade policial o caso, ainda que a paciente externe expressamente seu desejo de manter sigilo?”
I – Análise Jurídica
1.Breves comentários sobre a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006– Lei Maria da Penha e normativos
A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, é popularmente conhecida como Lei Maria da Penha. Foi considerada em 2012 pela Organização das Nações Unidas (ONU), a terceira melhor lei do mundo no combate à violência doméstica, perdendo apenas para Espanha e Chileii.
Outros instrumentos normativos no País também podem ser apontados como objeto de combate a violência contra as mulheres:
• Lei nº 13.104, de 09/03/2015 – Altera o art. 121 do Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei de Crimes Hediondos, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos Saiba mais: Com sanção presidencial, feminicídio é tipificado no Código Penal brasileiro;
• Lei nº 10.778, de 24/11/2003 – Lei da Notificação Compulsória dos casos de violência contra a mulher que forem atendidos em serviço de saúde pública ou privada;
• Lei nº 12.015, de 07/08/2009 – Dispõe sobre os crimes contra a dignidade sexual;
• Lei nº 12.845, de 01/08/2013 – Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual;
• Resolução nº 1, de 16/01/2014 – dispõe sobre a criação da Comissão Permanente Mista de Combate à Violência contra a Mulher do Congresso Nacional;
• Lei Estadual nº 14.478, de 23/01/2014 – Dispõe sobre o monitoramento eletrônico de agressor no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul;
• Código Penal Brasileiro – Decreto-Lei nº 2.848, de 07/12/1940;
• Constituição Federal, parág. 8º/art. 226 – Dispõe que o Estado criará mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares;
• Lei Orgânica da Defensoria Pública (Lei Complementar nº 80, de 12/01/1994);
• Decreto nº 7.958, de 13/03/2013 – estabelece diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde;
• Decreto nº 7.393, de 15/12/2010 – Dispõe sobre o funcionamento do Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher;
• Decreto nº 1.973, de 01/08/1996, que promulgou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, Belém do Pará, 09/06/1994);
• Decreto nº 89.460, de 20/03/1984, que promulgou a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra a Mulher/CEDAW, 1979);
• Decreto nº 5.017, de 12/03/2004, que promulgou o Protocolo de Palermo (Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças);
• Decreto nº 678, de 06/11/1992, promulgou o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22/11/1969).
A Lei Maria da Penha (LMP), em 2010, foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI n. 4424 no Supremo Tribunal Federal, cujo tema abordado era se a ação penal com base na Lei deveria ser iniciada pelo Ministério Público, mesmo sem representação da vítima. Outro assunto abordado, citando o julgamento do HC 106212/MS – STF, foi a impossibilidade desse tipo de ação ser julgada por juizado especial, como se fosse de menor potencialidade ofensiva, mesmo em se tratando de lesão corporal leve.
A decisão da ADI está assim ementada:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.424 DISTRITO FEDERAL RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO REQTE.(S) :PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA INTDO.(A/S) :PRESIDENTE DA REPÚBLICA ADV.(A/S) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO INTDO.(A/S) :CONGRESSO NACIONAL
AÇÃO PENAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER – LESÃO CORPORAL – NATUREZA. A ação penal relativa a lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada – considerações.A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em julgar procedente a ação direta para, dando interpretação conforme aos artigos 12, inciso I, e 16, ambos da Lei nº 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico, nos termos do voto do relator e por maioria, em sessão presidida pelo Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas. Brasília, 9 de fevereiro de 2012. MINISTRO MARCO AURÉLIO – RELATORiii (grifei)
Desse modo, tem-se que a corrente majoritária da Corte acompanhou o voto do relator, Ministro Marco Aurélio, vencido o voto do Ministro Cezar Peluso (Presidente), decidindo que cabe ao Ministério Público dar início a ação penal sem necessidade de representação da vítima e, relembrou que não compete aos Juizados Especiais julgar os crimes cometidos no âmbito da Lei Maria da Penha, conforme decisão anterior no HC-106212/MS.
Vale aqui transcrever a menção do HC no julgamento da ADI 4424:
“A seu turno, no julgamento do HC-106212/MS, também relatado pelo Ministro Marco Aurélio de Mello, o Pleno do Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do art. 41 da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), de modo a afastar a incidência da Lei 9.099/1995 (Juizados Especiais), ainda que se cuidasse, na hipótese concreta, de contravenção, e não de crime stricto sensu, em decisão assim ementada: “VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – ARTIGO 41 DA LEI Nº 11.340/06 – ALCANCE. O preceito do artigo 41 da Lei nº 11.340/06 alcança toda
qualquer prática delituosa contra a mulher, até mesmo quando consubstancia contravenção penal, como é a relativa a vias de fato . VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – ARTIGO 41 DA LEI Nº 11.340/06 – AFASTAMENTO DA LEI Nº 9.099/95 – CONSTITUCIONALIDADE. Ante a opção políticonormativa prevista no artigo 98, inciso I, e a proteção versada no artigo 226, § 8º, ambos da Constituição Federal, surge harmônico com esta última o afastamento peremptório da Lei nº 9.099/95 – mediante o artigo 41 da Lei nº 11.340/06 – no processo-crime a revelar violência contra a mulher . ” (grifei)
Assim, se concretizou no ordenamento jurídico que independente da vontade, ou melhor dizer, da iniciativa da vítima, o Ministério Público tem o dever de dar início à ação penal contra o agressor, nos termos da citada lei.
2. Breves comentários sobre a Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003-
Lei da notificação compulsória – violência doméstica
A Lei n. 10.778, de 24 de novembro de 2003, estabelece a obrigatoriedade de notificação compulsória, no território nacional, no caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados.
Entende-se por violência contra a mulher “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, inclusive decorrente de discriminação ou desigualdade étnica, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público quanto no privado (§ 1o), incluindo “violência física, sexual e psicológica” (...) (§ 2º)iv.
A referida lei menciona claramente a responsabilidade que os profissionais de saúde e instituições têm de comunicar os casos de abuso de que tiverem conhecimento. Como será realizada essa comunicação? Essa é a grande preocupação dos responsáveis pelos atendimentos.
O que se tem ao certo é que:
a)“As pessoas físicas e as entidades, públicas ou privadas, abrangidas ficam sujeitas às obrigações previstas nesta Lei” (art. 4º);
b) “A notificação compulsória dos casos de violência de que trata esta Lei tem caráter sigiloso, obrigando nesse sentido as autoridades sanitárias que a tenham recebido.” (Art. 3º) e, (negritei)
c) “A identificação da vítima de violência referida nesta Lei, fora do âmbito dos serviços de saúde, somente poderá efetivar-se, em caráter excepcional, em caso de risco à comunidade ou à vítima, a juízo da autoridade sanitária e com conhecimento prévio da vítima ou do seu responsável. (Parágrafo único, art. 3º). (negritei)
Dessa forma, tem-se que, após o atendimento prestado à mulher violentada (médico, psicólogo, assistente social e outros), notificado esse atendimento, a autoridade sanitária terá o “juízo” de definir se é caso de risco à comunidade ou à vítima, para a concretização da notificação compulsória.
O que se discute, ainda, é como se dará na rede de saúde pública e particular a concretização da notificação compulsória do profissional da saúde que atende a mulher violentada. Como ficará o sigilo profissional? Que tipo de documento (prontuário) e que tipo de informação o médico deverá passar as autoridades competentes? Quem decidirá se é caso de risco à comunidade ou à vítima?
A título de informação, anexamos documentos que atestam que o tema ainda é objeto de estudo do Ministério Público do Distrito Federal, inclusive com participação do Conselho Federal de Medicina (vide documentos anexos)v, onde uma comissão de estudos, inclusive com outros profissionais, procuram um denominador comum para a elaboração de um modelo de documento (Termo) para ser preenchido pelos profissionais envolvidos, e especial, se estuda a definição de “casos de risco à comunidade ou à vítima”.
E nesse momento que se inicia a discussão sobre a quebra do sigilo médico e dos outros profissionais envolvidos, ou melhor dizer, a quebra do sigilo da paciente. Nesse caso, vamos nos ater ao sigilo do profissional da medicina.
3. Notificação compulsória e Sigilo Médico e dever legal
Com certeza, são os detalhes do atendimento médico, descritos no prontuário médico, que levarão as autoridades sanitárias a decidir sobre a concretização da notificação compulsória.
O prontuário médico deverá servir de prova para tal ato? Diz a Lei Maria da Penha que “Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde.” (§ 3o , art. 12).
Assim, repetimos a pergunta do ora Consulente “Deverá o profissional, por força do que determina a lei, comunicar à autoridade policial o caso, ainda que a paciente externe expressamente seu desejo de manter sigilo?”
3.1.Do sigilo do paciente e do dever de informar
É necessário a análise de outras legislações para uma resposta fundamentada ao consulente. Como já apontado anteriormente, várias outras normas envolvem o tema.
No entanto, esta parecerista registra de pronto com severa crítica à Lei da notificação compulsória e à decisão do Supremo de ter assentado a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico.
A crítica está nas consequências de medidas como essas e o despreparo do Estado para amparar a vítima depois que o ofensor tem ciência de que foi denunciado. Tem hoje o Estado condições de proteger a vítima e seus filhos? Tem como ampará-la econômica e emocionalmente?
O que temos é que ainda não há punição rápida e eficaz do ofendido. E que em muitos casos o ofensor volta ao lar, violenta novamente a mulher e, em muitos casos, o próprio filho para puni-la, ou deixa o lar sem sustento.
Preocupação também com a questão da vulnerabilidade da mulher violentada é relatada no voto do Ministro Cezar Peluzo na já citada ADI 4424:
(...) “Muitas mulheres não fazem a delação, não levam a notícia-crime por decisão que significa exercício do núcleo substancial da dignidade da pessoa humana, que é a responsabilidade do seu destino. Isso é dimensão que não pode ser descurada. O ser humano se caracteriza, exatamente, por ser sujeito da sua história, a capacidade que tem de se decidir por um caminho, e isso me parece que transpareceu à edição dessas duas normas agora contestadas. Mas a minha advertência vai ao legislador para que ele considere os seguintes riscos: primeiro, a possibilidade de intimidação da mulher em levar a notícia-crime, porque sabe que não vai poder influir no desenvolvimento da ação penal, nem vai poder paralisá-la. Alega-se que terceiros poderão fazê-lo, mas a notícia de terceiros é sempre excepcional. Essa violência, quase sempre, se dá no âmbito doméstico e é de conhecimento apenas das pessoas da família. Há casos - vamos dizer - marginais em que, pela brutalidade, extravasa os muros da residência e chega ao conhecimento dos vizinhos, mas isso não significa, necessariamente, uma condição de eficácia. Por quê? Porque ficar na dependência de notícia de terceiro é correr o risco de não haver notícia alguma. Alega-se que a mulher ignora - vamos dizer - as sutilezas jurídicas de uma ação pública. E, neste caso, para mim, a situação é ainda pior. Por quê? Porque há o risco de ela ser, continuando a conviver com o parceiro que a ofendeu - e pode ter sido ofensa eventual e isolada -, no meio dessa convivência eventualmente já pacificada mediante renovação do pacto familiar, ser surpreendida com uma sentença condenatória, que terá no seio da família consequências imprevisíveis. Por outro lado, isso pode desencadear maior violência por parte do parceiro ofensor, pela óbvia impossibilidade de a mera publicidade da ação penal constituir impedimento a essa mesma violência. O fato de ser pública a ação penal não impede que o parceiro se torne mais violento. No caso, antes, acirra a possibilidade dessa violência, porque ele sabe que estará agora sujeito a uma situação que escapa à possibilidade de intervenção mediante atuação da mulher. Noutras palavras, ele vai se ver numa situação em que poderá tomar atitude de represália mais violenta, pelo fato de ter sido processado e condenado por uma lesão leve! Por outro lado - e esse o aspecto que mais me preocupa, mais me incomoda, que mais me atormenta, e esta é a razão pela qual estou tomando esta postura -, acho que nós, do Judiciário, estamos assumindo todos esses riscos, e assumindo-os com perda da visão da situação familiar. Nós estamos concentrados na situação da mulher, que merece, evidentemente, todas as nossas preocupações, merece toda a proteção do ordenamento jurídico. Isso é coisa indiscutível. Mas assim o legislador, como o constituinte levaram em consideração, como valores, que têm que ser de algum modo compatibilizados, a necessidade da proteção da condição da mulher e a necessidade da manutenção da situação familiar, em que está envolvida não apenas a condição da mulher ou a condição do parceiro, mas também filhos, netos, outros parentes, e que constituem elemento fundamental na mecânica da sociedade. Por estas razões, que representam pouco menos que discordância intelectual com a postura adotada pela douta maioria, vou votar vencido para que meu voto fique marcado como advertência para o legislador. E faço-o na expectativa, e mais do que expectativa, na grande esperança de que a douta maioria tenha acertado mais uma vez. (grifei)
Por sua vez, ainda é contraditória as informações de redução de mortes de mulheres no País com o advento da Lei Maria da Penha. Muitos pesquisadores defendem que não houve mudança significativa no percentual. E as pesquisas governamentais apontam um índice mínimo de 10%.
Para Leila Garcia, pesquisadora do Ipea, a falta de aplicação da Maria da Penha é o grande problema. " Ainda não existem mecanismos de proteção necessários para a mulher que foi buscar ajuda. Em muitos casos, a mulher foi denunciar o parceiro e, posteriormente, foi assassinada", diz.vi
Pesquisas mostram tais realidade:
Pesquisa IBOPE/AVON de 2009 constatou que 24% dos entrevistados disseram ser a falta de condições econômicas para viver sem o companheiro o que mais levava uma mulher a continuar numa relação na qual era constantemente agredida fisicamente e/ou verbalmente pelo companheiro (24% dos homens, 24% das mulheres); 23%, que era a preocupação com a criação dos filhos (25% dos homens, 20% das mulheres); 17%, que era o medo das mulheres de serem mortas caso rompessem a relação (16% dos homens, 18% das mulheres); 12%, que era a falta de autoestima (11% dos homens, 13% das mulheres); 8%, que era a vergonha de admitir que era agredida/apanhava (7% dos homens, 8% das mulheres); 6%, que era a vergonha de se separar (8% dos homens, 5% das mulheres); 4%, que era a dependência afetiva (4% dos homens, 5% das mulheres); e 4% afirmaram que era porque a mulher acha que tem a obrigação de manter o casamento (4% dos homens, 4% das mulheres).
No mesmo ano de 2011, Pesquisa DataSenado constatou que 63% das entrevistadas responderam que as mulheres que sofrem agressão denunciam o fato às autoridades. na minoria das vezes; 27%, que não denunciam; 8%, que denunciam na maioria das vezes.
Em relação à Pesquisa DataSenado de 2009, houve uma diminuição de 47,06% da porcentagem de entrevistadas que declararam que as mulheres não denunciam as agressões. Sessenta e oito por cento das entrevistadas afirmaram, em respostas de múltipla escolha, que a razão que leva uma mulher a não denunciar a agressão é o medo do agressor; para 23%, é a preocupação com a criação dos filhos; para 22%, é a dependência financeira; para 18%, é o fato de não existir punição; para 18% é a vergonha da agressão; para 12%, é o fato de a mulher não conhecer seus direitos; para 11%, é o fato de a mulher acreditar que seria a última vez. Três por cento apontaram outras razões.vii
Essa realidade tem agora, ao ver desta parecerista, outro ponto negativo: a obrigatoriedade da notificação compulsória poderá gerar uma resistência da mulher violentada em procurar o médico, criando a quebra da relação de confiança entre médico e paciente.
Com isso, deverá o médico inserir no seu prontuário todos os registros da violência e fazer a comunicação a autoridade sanitária? Como lidar com o sigilo médico previsto no Código de Ética Médica e o dever de informar mesmo sem o consentimento da paciente.
Vale registrar novamente que a Lei da Notificação compulsória diz apenas que a notificação compulsória dos casos de violência tem caráter sigiloso, obrigando nesse sentido as autoridades sanitárias que a tenham recebido (art. 3º). No entanto, ressalva que a identificação da vítima de violência, fora do âmbito dos serviços de saúde, somente poderá efetivar-se, em caráter excepcional, em caso de risco à comunidade ou à vítima, a juízo da autoridade sanitária e com conhecimento prévio da vítima ou do seu responsável. (Parágrafo único. do art. 3º).
Assim, tem o médico e o dever legal notificar as autoridades sanitárias? Isso não é quebra de sigilo médico? O profissional da medicina não poderá posteriormente responder por crime de violação de segredo profissional, previsto no artigo 154 do Código Penal: “Revelar alguém, sem justa causa, segredo de que tem ciência em razão de função, ministérios, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”.
Esse assunto já foi tema de discussão pela classe médica quando da análise da notificação compulsória das doenças sexualmente transmissíveis, senão vejamos:
Segredo Médico
Assunto: Segredo Médico
Relator: Antonio Carlos Mendes - Assessor Jurídico
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, consulta-me sobre os aspectos legais e éticos do sigilo médico em face das requisições judiciais e policiais das papeletas, fichas de observações clínicas e respectivos fichários e do dever de comunicar crimes de ação pública que independem de representação, bem como a informação compulsória das moléstias infecto-contagiosas.
Noções
O silêncio imposto a determinados profissionais objetiva coibir a publicidade sobre fatos conhecidos no desempenho de determinada profissão e cuja revelação acarretaria danos à reputação, ao crédito, ao interesse moral ou econômico dos clientes ou de seus familiares.
O forte conteúdo moral levou a legislação penal brasileira a classificar a violação do segredo profissional dentre os crimes que ofendem a liberdade individual, pois todo indivíduo deve ter, na preservação de sua integridade física e moral, garantido o pleno exercício de sua vontade. Esta garantia seria frustrada se, “tendo forçosamente de recorrer aos conhecimentos técnicos ou à ajuda profissional de outrem, tivesse o receio de que os seus segredos, confiados ou surpreendidos, fossem traídos. O temos da quebra dos segredos poria em choque a liberdade de atuação da vontade”(Nelson Hungria, “Comentários ao Código Penal”, pág. 255).
A par da lei penal, a norma ética regulou, também, a conduta do médico visando a tutela mais eficaz do segredo médico, consoante o estatuído nos artigos 34 a 44 do Código de Ética Médica elaborado pelo Conselho Federal de Medicina, na forma do artigo 30 da Lei nº 3.268/57 (D.O.U., edição de 11/01/65).
Os preceitos contidos no aludido Código são “normas jurídicas especiais” porquanto submetem determinada classe profissional e conferem aos Conselhos atribuições voltadas ao asseguramento da eficácia das normas deontológicas. Portanto, os médicos registrados nos Conselhos Regionais de Medicina são obrigados à observância e cumprimento das normas contidas no Código de Ética Médica, sob pena de sanção.
Esta inteligência foi acolhida pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal ao conhecer e decidir a Representação nº 1.023 (RJ), consagrando o entendimento segundo o qual as normas contidas no Código de Ética Médica são normas jurídicas especiais submetidas a regime semelhante ao das normas e atos normativos federais.
Destarte, ao Judiciário cabe conferir eficácia ao segredo médico enquanto instituto jurídico-penal tendente à tutela da “liberdade de atuação da vontade”, competindo aos Conselhos Regionais de Medicina fazer observar as normas éticas sobre o instituto, assim entendidas aquelas contidas no Código de Ética Médica.
O segredo médico é uma espécie do segredo profissional, isto é, consiste no resultado das confidências que o médico, como tal, recebe de seus clientes, com o fim de poder prestar-lhe qualquer serviço atinente à sua profissão. As confidências feitas ao médico pelo doente não se devem restringir apenas àquelas que o paciente manifesta mas, antes, a tudo que o médico observa e verifica ligado à doença de seu cliente, incluindo o que lhe diz o doente e o que contempla por si e até o que descobre e que o doente não desejava revelar.
Resulta, pois, que o segredo médico, penal e eticamente protegido, é tão só aquele que se obtém, necessariamente, no exercício profissional e o conhecimento de segredos. Esta é a lição de Nelson Hungria: “é imprescindível que haja um nexo de causalidade entre o exercício da profissão e o conhecimento do segredo. A obrigação legal de reserva visa tão somente ao livre acesso junto a certas pessoas que por seu mister, se tornam confidentes necessários”(op. Cit., pág. 262).
Além do nexo causal apontado, o artigo 154 do Código Penal:
“Revelar alguém, sem justa causa, segredo de que tem ciência em razão de função, ministérios, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”
Sugere que devemos entender por “segredo” o fato que só é conhecido de uma ou de um número limitado de pessoas. “A esse caráter fundamental do fato, ao segredo devem juntar-se o interesse e a vontade do agente no sentido de mantê-lo secreto. Interesse legítimo em ocultar o fato, seja este, embora, “moralmente reprovável e contrário ao direito”. Vontade de defender o seu sigilo, que pode ser expressa ou deduzir-se da circunstância de que a divulgação do fato possa diminuir o seu conceito no meio familiar ou social, o seu prestígio político, o seu crédito de segurança profissional ou econômica, produzir-lhe, enfim, qualquer dano material ou moral” (Aníbal Bruno, “Direito Penal, Parte Especial”, I, Tomo IV, pág. 424).
A existência do “segredo” requer, pois, o concurso de dois fatores: um negativo, que consiste na ausência de notoriedade, isto é, que o fato não seja conhecido por um número indefinido de pessoas; e outro positivo, traduzindo a vontade determinante de sua custódia e preservação. Não deve ser, assim, um “secret de Polichinelle”.
O fator “vontade determinante” de resguardo do segredo, pode originar-se de “pedido formal de discrição”, ou, então, resultar de fato que, por sua própria natureza, clama segredo (doença venérea, perturbações de funções genitais, falhas estéticas, etc.).
As normas penais e éticas visam à preservação da intimidade do paciente, punindo o médico que revelar as confidências recebidas em razão de seu exercício profissional. O segredo pertence, pois, ao paciente e o direito reprime a conduta do profissional que injustamente o revele. Salvo por expressa determinação legal não há a possibilidade de obrigar o médico a quebrar o sigilo profissional. Entretanto, ocorrendo a “justa causa” o médico poderá revelar as confidências recebidas sem incorrer no crime de violação do segredo profissional.
O interesse na ocultação do fato pode ser moralmente reprovável e juridicamente punível e ainda assim o direito tutela o segredo. Assim, diz Nelson Hungria: “A vontade do segredo deve ser protegida ainda quando corresponda a motivos subalternos ou vise a fins censuráveis. Assim, o médico deve calar o pedido formulado pela cliente para que a faça abortar, do mesmo modo que o advogado deve silenciar o confessado propósito de fraude processual do seu constituinte, embora, num e noutro caso, devam os confidentes recusar sua aprovação ou entendam de desligar-se da relação profissional. Ainda, mesmo que o segredo verse sobre fato criminoso deve ser guardado. Entre dois interesses colidentes - o de assegurar a confiança geral
dos confidentes necessários e o da repressão de um criminoso - a lei do Estado prefere resguardar o primeiro por ser mais relevante. Por outras palavras: entre dois males - o da revelação das confidências necessárias (difundindo o receio geral em torno destas, com grave dano ao funcionamento da vida social) e a impunidade do autor de um crime - o Estado escolhe o último, que é o menor”. (op. Cit. pág. 261).
Revelação
Afigura-se-nos que a consumação do crime se dá com a revelação do segredo. A “revelação” é o ato que faz passar um fato da esfera do sigilo para a do conhecimento de terceiros (que não tenham direito de conhecê-lo). Basta para a consumação do crime a comunicação do fato a uma só pessoa.
Os meios utilizados na revelação podem ser variados, sendo suficiente que o conteúdo do segredo e a identidade do paciente sejam dados ao conhecimento de outrem. Neste sentido, preleciona João Bernardino Gonzaga:
“A comunicação pode ser oral ou escrita, feita através de uma carta particular, ou pela imprensa; dirigida a destinatários certos e incertos. Além da palavra, também os gestos em alguns casos serão aptos ao desvendamento do segredo. Idem, a exibição de imagens, de fotografias, de radiografias, de documentos em geral” (Violação do Segredo Profissional), Max Limonad, São Paulo, 1976, pág. 154).
Aliás, esta linha de entendimento encontra respaldo no Código de Ética Médica, ao disciplinar os boletins médicos (art. 40), as papeletas e folhas de observações clínicas e respectivos fichários (art. 41), inclusive os anúncios, relatos ou publicações científicas (art. 42), restando inequívoco que o segredo médico alcança decididamente tais documentos, tornando-os, assim, meios e instrumentos suficientes à revelação do sigilo profissional.
Justa Causa
Em conseqüência, a violação do segredo profissional tanto pode ser decorrente da conduta do médico como de seus auxiliares que, tendo conhecimento das confidências necessárias em razão da profissão, as revelem sem justo motivo. Nestas condições encontram-se, também, os funcionários e dirigentes de hospitais, clínicas, maternidades, etc., que por dever de ofício tenham acesso às informações confidenciais constantes dos boletins médicos, diagnósticos, papeletas, fichas médicas, etc. (ver Francisco Peiró, “Deontologia Médica”, Livraria Cruz, Braga, Portugal, 1951, pág. 364/365).
Embora a “revelação” seja o momento consumativo do crime, a possibilidade de dano é elemento essencial do fato criminoso. Exige-se, pois, como condição de punibilidade, a potencialidade do dano. É preciso que do fato possa resultar dano a outrem, ao paciente ou aos seus descendentes ou ascendentes, como por exemplo, uma doença hereditária de graves conseqüências.
Este dano em potencial (não é preciso que seja efetivo) “pode ser da mais variada natureza: moral, econômica, familiar, etc. É impossível circunscrevê-lo aprioristicamente. Quando se trata de prejuízo patrimonial, mais fácil será identificá-lo. Idem quando traduz-se em algum mal concreto, tangível: perda de emprego, rompimento de noivado ou casamento, diminuição da reputação da vítima, do seu prestígio no ambiente em que vive, pela divulgação de comportamentos desabonadores, etc.” (João Bernardino Gonzaga, op. Cit. pág. 162).
Demais, a revelação do segredo deve trazer, incontroverso, o elemento subjetivo que “é o dolo do profissional, isto é, a vontade consciente de divulgar o conteúdo da confidência necessária, sabendo que atua de maneira contrária ao Direito” (Aníbal Bruno, op. Cit., pág. 420).
A exigência do dolo exclui a possibilidade do crime culposo de violação do segredo profissional. Assim, ocorrendo a conduta culposa do médico (por exemplo, a conduta negligente) não se caracterizará o crime de violação do segredo profissional.
O dever de guardar o segredo médico não é absoluto. O próprio artigo 154 do Código Penal indica os fatos descaracterizadores do crime, tornando lícita a revelação das confidências recebidas em razão do desempenho profissional. Este fator é denominado “justa causa” e tem por finalidade excluir a ilicitude penal.
A “justa causa” consiste nos fatos que descaracterizam a figura penal; porém não informa a obrigação do médico de revelar o segredo. Em outras palavras: tendo o médico revelado segredo de que teve conhecimento quando do exercício profissional, cumpre indagar se houve justa causa para a revelação, o que desfigura o crime de violação de segredo profissional. Entretanto, o instituto da justa causa não deve servir para obrigar o médico a revelar fato sob a tutela do sigilo profissional. O profissional, especificamente o médico, não pode ser constrangido a pautar determinada conduta, sem que a lei o obrigue.
A conduta consubstanciada na revelação do segredo médico não é contrária ao Direito (antijuridicidade) quando realizada com justa causa. É Aníbal Bruno que coloca de maneira irretocável esta circunstância: “O Código impõe declaradamente que o fato se realize sem justa causa, reforçando com essa expressa advertência a exigência da antijuridicidade, elementar em todo o crime. Sem justa causa, isto é, sem que concorra no proceder do agente qualquer circunstância capaz de afastar a sua ilicitude. Pode legitimar o fato como causa geral de exclusão do injusto, como o consentimento do ofendido, que torna o agente autorizado a dispor do segredo, o exercício de um direito, o cumprimento de um dever legal, a defesa de um interesse legítimo próprio ou alheio” (op. cit., pág. 420).
A justa causa tem, assim, os seus limites fixados pelo direito, não admitindo circunstâncias estranhas que conduziriam fatalmente à “imprecisão e alargamento excessivo da posição justificativa, com o enfraquecimento da tutela penal”.
Destarte, o segredo médico, como espécie do segredo profissional, cede a razões relevantes que o direito reconhece e regula, evitando que o médico seja punido. Estas razões são identificadas pela expressão “justa causa” e explicam o caráter não absoluto do segredo porquanto não se pode exigir do médico que, em determinadas circunstâncias, se mantenha silente acerca das confidências recebidas quando do exercício profissional
Em alguns casos é a própria lei que, textualmente, obriga a revelação, como acontece nas doenças infecto-contagiosas de notificação compulsória ou de outras doenças profissionais. São deveres impostos pelo Regulamento do Departamento de Saúde Pública (Decreto nº 16.300, de 31 de dezembro de 1923) e, também, pelo Decreto-Lei nº 4.449, de 9 de julho de 1942. O Código Penal, ao abrigar a comunicação, nada mais fez do que dar força e eficácia àquelas normas jurídicas extra-penais.
Desta forma, várias outras dispensas à obrigação de sigilo resultam de leis extra-penais (médicos militares, médicos legistas, médicos sanitários, peritos, etc.) e, assim, em tais casos, não há violação do segredo médico porque a conduta profissional apresenta-se não como crime, mas como fato lícito, segundo, aliás, reconhece o Código Penal, no inciso III, do art. 19: “não há crime quando o agente pratica o fato: em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”.
A par das hipóteses acima que descaracterizam a conduta delituosa do médico, a Lei de Contravenções Penais, no art. 66, II, reprime a omissão de comunicação de crime. Esta circunstância impede, também, a configuração do crime de violação do segredo profissional.
O “estado de necessidade” é outro excludente, isto é, a sua ocorrência impede que se configure o crime de violação do segredo profissional.
Com efeito, a revelação do segredo não constitui crime quando motivada pela necessidade de salvaguarda de um interesse contrário aquele tutelado pelo art. 154, do Código Penal, ainda que de maior relevância, mas cujo sacrifício, nas circunstâncias do caso concreto, não é razoável exigir do médico.
Ainda, como excludente de criminalidade, encontramos a legítima defesa. Este fator é suficiente para descaracterizar o crime. A revelação das confidências necessárias objetivando defender um interesse legítimo, próprio ou de terceiro, em face do dono do segredo, exclui a conduta antijurídica. Assim, por exemplo, o “médico injustamente atacado em sua honra profissional por seu cliente pode revelar o segredo deste se tanto for necessário para sua defesa”. Não há, também, a ocorrência da figura típica se o médico revela segredo de menores de idade a seus pais, tutores ou responsáveis, a fim de que “tratamento idôneo se faça, a proteção indicada se realize e a punição de culpado se encaminhe”.
Nestes casos, a revelação do segredo deverá ser feita na medida necessária à defesa do direito do médico ou do terceiro injustamente ofendido. O exagero e a falta de comedimento não são acolhidos pela conduta atinente à legítima defesa, enquanto excludente da antijuridicidade.
Informações às Autoridades Judiciais, Policiais e Sanitárias
A lei impõe ao médico o dever de comunicar às autoridades competentes a ocorrência de crimes de ação pública que independem de representação e a constatação de moléstias infecto-contagiosas.
A comunicação dessas moléstias infecto-contagiosas deve ser feita incondicionalmente porque a lei não estatui condição alguma, porquanto esta norma visa à saúde pública, valor de extrema relevância, segundo a ordem jurídica.
Contudo, o mesmo não acontece com o dever de comunicar crimes. Essa comunicação deve restringir-se aos crimes de ação pública incondicionada, isto é, independem de provocação do ofendido e não pode sujeitar o cliente ou paciente a procedimento criminal.
Com efeito, a estrutura que objetiva tutelar as confidências recebidas por profissionais em razão do exercício de sua profissão (confidentes necessários, como os médicos), resguarda até mesmo a postura de citados profissionais perante os magistrados, impedindo o depoimento em Juízo, como testemunhas:
“art. 207, do Código de Processo Penal:
São proibidas de depor as pessoas que em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho”.
“art. 406, do Código de Processo Civil:
A testemunha não é obrigada a depor de fatos:
II - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo”.
Observa-se que a regra é o não depoimento em Juízo, isto é, a lei desobriga o profissional de revelar o segredo ao magistrado, limitando-se permitir o depoimento do profissional desde que o queira e esteja autorizado pela parte interessada.
A tutela do segredo profissional e, portanto, do segredo médico é de tal forma expressiva que o coloca a salvo mesmo quando das relações com a Justiça.
Nesta linha, encontra-se o artigo 35, do Código de Ética Médica que preceitua o seguinte: “O médico não revelará, como testemunha, fatos de que tenha conhecimento no exercício de sua profissão, mas intimado a depor, é obrigado a comparecer perante a autoridade para declarar-lhe que está preso à guarda do segredo profissional”.
Entretanto, embora não haja permissivo legal algum que obrigue o médico a quebrar o sigilo profissional, em face de crime com graves conseqüências sobre terceiros, a revelação pode tornar-se um “imperativo de consciência”, isto é, decorre de um motivo nobre que a justifique.
Comunicação de Crime
A lei penal obriga o médico a comunicar crime de ação pública, que independa da representação, conhecido no exercício da profissão. Esta comunicação não pode, ainda, expor o cliente a procedimento criminal. É o que estatui o artigo 66, II, da Lei de Contravenções Penais, ao reprimir a omissão de comunicação de crime.
A conduta contravencional não se caracteriza se o crime não for de ação pública ou, ainda sendo, dependa de representação. A lei exige, pois, que se trate de crime de ação penal pública incondicionada que é regra em nosso direito, pois o Estado tem interesse em julgar os atos previstos como delituosos e punir os delinqüentes para garantir a estabilidade das relações sociais.
Cumpre ressalvar, conforme notou Nelson Hungria, que “jamais a nossa legislação penal determinou ou autorizou que os médicos se fizessem delatores de crimes, O que se tem assentado em doutrina, e deve servir, sem dúvida, à interpretação do preceito incriminador da quebra do sigilo, é que os médicos podem denunciar o crime de que tenham notícias, não propriamente em razão da profissão, mas por ocasião do exercício desta ou, em qualquer caso, quando praticado contra o próprio cliente, se da revelação nenhum prejuízo possa resultar a este. O médico que v. g. surpreende a amante do enfermo agonizante a subtrair os títulos ao portador guardados num cofre existente na casa pode até prendê-la em flagrante. Também não padece dúvida que o segredo é devido pelo médico ao seu cliente e não ao seu algoz” (op. Cit., pág. 269)
Mas, o núcleo do tipo contravencional é a expressão verbal “deixar de comunicar”, o que revela uma omissão do médico. Este, tomando de crime de ação pública que depende de representação, deixa de informar à autoridade competente, qual seja o Delegado de Polícia, o Juiz de Direito, o membro do Ministério Público (art. 6º, 26 e 27 do Código de Processo Penal).
Este dever de comunicar o fato punível à autoridade competente encontra uma ressalva no próprio inciso II, do art. 66, da Lei de Contravenções Penais: “A comunicação pode deixar de ser feita, se expuser o cliente a procedimento criminal. Tal permissão baseia-se de ampla confiança do cliente no médico ou profissional sanitário. Caso contrário, para evitar possível procedimento criminal, o cliente poderia omitir acontecimento de grande importância para a sua própria saúde ou de outrem” (Sérgio de Oliveira Médice, “Contravenções Penais”, Edição Jalovi, pág. 185).
Portanto, ao tomar conhecimento de tentativa de aborto por parte de cliente, o médico deverá calar-se porque a sua paciente estará sujeita a procedimento criminal. Entretanto, caso constate que a tentativa foi de outrem e à revelia da cliente, o médico, com a anuência da vítima ou de seu responsável, deve comunicar o crime, pois poderá ter ocorrido, inclusive, lesão corporal em virtude da resistência oposta pela vítima.
Da mesma forma, nos casos de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, o médico está sujeito ás regras do art. 66, II, da Lei de Contravenções Penais. Todavia, não basta que haja a consumação do suicídio para obrigar o médico a comunicar o crime de induzimento, instigação ou auxílio porque, caso contrário, não se instaura o dever legal, cuja omissão é punida pela Lei de Contravenções Penais. Observe-se, ainda, que o suicídio não é considerado crime pela nossa lei penal, mas sim o induzimento, a instigação ou o auxílio.
Desta maneira, incorrendo o induzimento, a instigação ou o auxílio, a constatação do suicídio não é razão bastante para instaurar o dever de comunicar crime de ação pública incondicionada pelo simples motivo de que o crime inexistiu.
Outra solução deve ser dada ao fato de psiquiatria concluir que sua cliente está sendo induzida ao suicídio, encontrando-se esta indefesa em virtude de seu estado psicológico. Neste caso, a comunicação é um imperativo porquanto configurar-se-á, a falta de comunicação, a omissão de que trata o art. 66, II da Lei de Contravenções Penais. Evidentemente, a tutela da vida da paciente é um valor maior que impede a caracterização do crime de violação do segredo profissional, mesmo porque, como afirmou Nelson Hungria, “o dever de sigilo é devido à paciente e não ao seu algoz”.
Requisição de Fichas e Boletins Médicos
O segredo médico, enquanto instituto jurídico, acolhe no seu bojo as papeletas, boletins médicos, folhas de observação clínicas e fichários respectivos que, assim, submetem-se ao regime penal e ético próprio que resguarda e tutela o sigilo profissional.
Desta forma, além dos médicos, os funcionários e dirigentes de hospitais, clínicas e casas de saúde, estão sujeitos às penas do art. 154, do Código Penal, eventualmente, revelarem o segredo médico através da entrega a terceiros ou exposição das anotações clínicas atinentes aos pacientes.
Com efeito, a lei não permite sequer, que o profissional da Medicina preste depoimento em Juízo acerca de fatos conhecidos em razão de sua profissão. Esta regra permeia toda a ordem jurídica e não admite que, por vias transversas, as confidências necessárias sejam levadas ao conhecimento do Judiciário ao da Polícia mediante a requisição de fichas e boletins médicos.
Assim, não há nenhum dever legal que obrigue o médico, o funcionário ou dirigente de hospital e clínicas em geral a entregar as papeletas, as folhas de observação clínica e os boletins médicos. Não havendo disposição legal respaldando a ordem da autoridade judiciária ou policial, ocorre constrangimento ilegal, porque “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei” (art. 153, § 2º, da Constituição Federal).
Este entendimento foi sufragado pelo Colendo Supremo Tribunal Federal ao julgar o “Habeas Corpus” nº 39.308, de São Paulo e cuja emenda é a seguinte:
“Segredo Profissional. Constitui constrangimento ilegal a exigência da revelação do sigilo e participação de anotações constantes das clínicas e hospitais”.
A inteligência acima foi acolhida, também, pelo eminente Desembargador Azevedo Franceschini, do Tribunal de Justiça de Estado de São Paulo, em voto vencido nos autos do Mandado de Segurança nº 135.681, a saber:
a) “A divulgação de conteúdo de ficha médica se aplica toda a disciplina que garante o sigilo oral, pois a ficha clínica não passa de memorização das observações médicas sobre o caso.”
b) “Também não importa que o episódio clínico haja saído da alçada médica e a ficha recolhida ao arquivo morto do nosocômio, ao qual só tem normalmente acesso o pessoal burocrático. O segredo subsiste. Aliás adverte Perraud Charmantier (“Le Secret Professionel”, fls. 79), que muito embora a função de Diretor de um nosocômio (e outros tanto se diga de seus subordinados)
seja meramente administrativa, também ela se encontra jungida ao segredo profissional”.
Evidentemente, esse constrangimento ilegal decorrente da requisição judicial ou pedido de informações da autoridade policial instaura, talvez, coação irresistível, apresentando-se como causas justificativas ou excludentes de criminalidade, pois o art. 18, do Código Penal, estatui: “Se o crime é cometido sob coação irresistível ou estrita obediência à ordem não manifestante ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da ordem”.
Essas causas justificativas ou excludentes de criminalidade podem evitar a punição daquela que, atendendo às requisições judiciais ou solicitações policiais, viola o segredo profissional. Porém, o profissional submetido à disciplina do sigilo médico deve preservar esse direito individual, resistindo a esses atos manifestantes ilegais e utilizando-se do “habeas corpus””, garantia constitucional eficaz para impedir constrangimento das autoridades judiciárias e policiais.
A esta disciplina jurídico-penal sujeitam-se, além dos médicos, os funcionários e dirigentes de hospitais mantidos ou subvencionados pelo Poder Público, inclusive aqueles credenciados pela Previdência Social.
Conclusão
O segredo médico é espécie do segredo profissional abrangendo as anotações, boletins médicos, papeletas, folhas de observação, clínica, etc., obrigando não só o médico como também os enfermeiros, funcionários e dirigentes de hospitais públicos e particulares.
Sendo instituto jurídico tem a conformação que lhe empresta o direito positivo e, assim, não é absoluto. As confidências recebidas podem ser reveladas nas hipóteses de justa causa, de legítima defesa, do estrito cumprimento do dever legal, do exercício regular de direito ou estado de necessidade.
Enquanto justificativa ou excludente da criminalidade, a justa causa impede a punição do médico, mas, sobre esse fundamento, nenhuma autoridade pode obrigar o confidente necessário a revelar segredo que lhe foi entregue em razão do exercício da profissão.
Todavia, a requerimento do paciente ou responsável e na defesa de direito de seu cliente, o médico está obrigado a depor como testemunha e a exibir as suas anotações e fichas clínicas.
A par disso, o médico está obrigado a comunicar, incondicionalmente, à autoridade sanitária, as doenças infecto-contagiosas e outras de notificação obrigatória. Quanto aos crimes de ação pública incondicionada de que teve conhecimento no exercício da profissão, o médico está, igualmente, obrigado a fazer a comunicação à autoridade policial, ao Judiciário ou ao Ministério Público, desde que não sujeite o seu cliente a procedimento penal. Parecer exarado em 10 de fevereiro de 1980
Logo, na legislação brasileira, o sigilo e a privacidade da informação são garantidos pelo Código Penal, no art.154, o crime de violação do segredo profissional, e pelo Código Civil, no art. 229, determinam que ninguém pode ser obrigado a depor acerca de um fato que se constitua um segredo de Estado ou profissão.
Por sua vez, o Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1931/2009), nos arts. 73 e 74, aborda as situações em que é vedada ao médico a revelação de informações, considerando que a quebra do sigilo deva ocorrer somente por justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente. Sendo assim, o sigilo é considerado um dever inerente ao desempenho da atividade médica e sua violação se caracteriza como uma infração ética, penal e civil.
Portanto, no caso de notificação compulsório prevista na citada lei, o médico deverá comunicar as autoridades competentes, sob o mando do estrito cumprimento dever legal (III, art. 23, CP), quando for caso de risco à comunidade e com conhecimento prévio da vítima ou do seu responsável, com respaldo nos arts. 73 e 74 do Código de Ética Médica, para que o MP inicie uma ação pública incondicionada.
3.4 . Da entrega do prontuário médico
Mas, o que não se pode confundir é que o médico não está obrigado a entregar o prontuário médico da paciente, esse está resguardado sempre pelo sigilo profissional, por conter diversas informações que vão além do que as autoridades sanitárias precisam ter conhecimento para notificar o crime, no caso de violência contra a mulher.
Tal entendimento está previsto em várias outras manifestação da Assessoria Jurídica do CFM, como por exemplo no DESPACHO SEJUR n.º 254/2010, aprovado em Reunião de Diretoria em 08/06/2010, Expediente CFM n.º 3667/2010, assim assuntado: Fornecimento pelo médico de Prontuário a Autoridade Policial, Ministério Público e Autoridade Judiciária sem o consentimento do paciente, onde conclui que nos “casos do art. 269 do Código Penal, onde a comunicação de doença é compulsória, o dever do médico restringe-se exclusivamente a comunicar tal fato à autoridade competente, sendo proibida a remessa do prontuário médico do paciente” (art. 2º. da Resolução CFM n.º 1.605/2000).
II. Da Conclusão
Assim, em resposta aos questionamentos do Consulente, podemos afirmar que deverá o profissional da medicina, por força do que determina a legislação brasileira, especialmente, a que trata da notificação compulsória, comunicar à autoridade sanitária o caso, ainda que a paciente externe expressamente seu desejo de manter sigilo, em caso de risco à comunidade ou à vítima, e com conhecimento prévio da vítima ou do seu responsável. (Parágrafo único, art. 3º da Lei n. 10.778/2003). (grifei)
Nesse caso, é a autoridade sanitária que irá encaminhar a denúncia a delegacia da jurisdição competente. Os crimes contra a mulher não precisam ser denunciados exclusivamente nas Delegacias de Defesa da Mulher.
Tal comunicação está sob o mando do estrito cumprimento dever legal (III, art. 23, CP), com respaldo nos arts. 73 e 74 do Código de Ética Médica.
Assim, em analogia ao caso do art. 269 do Código Penal, onde a comunicação de doença é compulsória, a notificação compulsória no caso de violência doméstica prevista no art. 1º. e seguintes da Lei n. 10.778/2003, o dever do médico restringe-se exclusivamente a comunicar tal fato à autoridade competente, que diretamente é à autoridade sanitária, sendo proibido a remessa do prontuário médico do paciente” (art. 2º. da Resolução CFM n.º 1.605/2000).
A autoridade sanitária que irá definir quais casos que serão encaminhados à delegacia competente.
Por fim, registre-se que com apontamentos mais técnicos (de um profissional da área médica/Comissões) sobre a questão, poderemos reapreciar a matéria.
É o parecer, s.m.j.
Brasília, 18 de fevereiro de 2016.
Giselle Crosara Lettieri Gracindo
Assessora Jurídica
De acordo:
José Alejandro Bullón Silva
Coordenador do SEJUR
i LEI Nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.
ii http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/61585-cnj-leva-ao-mexico-experiencia-da-lei-maria-da-penha (Disponível em 18.02.2016)
iii http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6393143 (disponibilizado em 09.08.2016)
iv Lei no 10.778, de 24 de novembro de 2003.
v Art. 8o A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes(...).LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006.
(Vide ADI nº 4427)
Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.
vi http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/09/25/lei-maria-da-penha-nao-diminuiu-violencia-contra-mulher-no-brasil-diz-ipea.htm (Disponível em 18.02.2016)
vii http://institutoavantebrasil.com.br/por-que-as-mulheres-nao-denunciam-seus-agressores-com-a-palavra-a-sociedade/(Disponível em 18.02.2016)
Não existem anexos para esta legislação.
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