
PROCESSO-CONSULTA CFM nº 192/11 – PARECER CFM nº 35/11
INTERESSADO: CRM-PE
ASSUNTO: Rastreamento para detecção precoce de câncer de próstata
RELATOR: Cons. Lúcio Flávio Gonzaga Silva
EMENTA: As atuais evidências científicas apontam para uma indefinição sobre o rastreamento de base populacional para o câncer de próstata. O rastreamento espontâneo, individual, deve ser estimulado devido à possibilidade do diagnóstico precoce, possibilitando sua cura e consequente queda da mortalidade específica.
DA CONSULTA
O Ministério Público do Estado de Pernambuco encaminha por sua Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania – Promoção e Defesa da Saúde – o ofício nº 1.173/2010 - PIP 0030/2010 - 11ª PJS ao presidente do CREMEPE, dr. A. L., datado de 16 de dezembro de 2010 e assinado pela MM promotora de Justiça dra. M. I. B. V. S., nos termos: “Solicito a V.Sa. que encaminhe a esta Promotoria de Justiça (...) informações acerca da orientação técnica desse órgão sobre o rastreamento para detecção precoce do câncer de próstata, diante do contido no documento em anexo (...)”.
Documento anexo
Reflexões éticas e bioéticas acerca do rastreamento (screening) e do tratamento do câncer de próstata (documento encaminhado por e-mail por A.M. para a dra. I.B.).
• Rastreamento (screening) é a detecção precoce de um câncer, intervenção voltada para pessoas sem nenhum sintoma e aparentemente saudáveis (OMS);
• Um exame ideal de screening deve ser simples, eficiente, de baixo custo e com pouca ou nenhuma morbidade ou desconforto;
• Uma doença só deve ser rastreada se o diagnóstico precoce modificar o seu prognóstico, tanto em relação à morbidade quanto à mortalidade, ou pelo menos o sofrimento por ela causado;
• O princípio hipocrático “Primum non nocere” (primeiro não fazer o mal, primeiro não ser iatrogênico) nos alerta para o risco que as intervenções de saúde possuem tanto para o bem quanto para o mal de nossos pacientes. O princípio bioético da não maleficência é uma nova versão desse antigo adágio;
• A medicina é tanto arte quanto ciência. Entretanto, a arte é adaptar para um indivíduo de características únicas a verdade científica provisória;
• Uma verdade científica provisória é obtida quando um pool de trabalhos, bem desenhados metodologicamente, realizado por grupos independentes, obtêm resultados semelhantes. Assim como uma andorinha só “não faz verão”, apenas um único trabalho, ou alguns trabalhos com limitações metodológicas, “não faz verdade científica”;
• A ética e a bioética indicam que após termos obtido a verdade científica (na área em tela, medicina baseada em evidências) temos que analisar o custo, a beneficência e a maleficência da aplicação, nos seres humanos, dessa verdade científica provisória. Uma intervenção cientificamente comprovada pode ter custo tão expressivo que pode inviabilizar uma série de ações tão ou mais efetivas do que a verdade científica proposta;
• Uma verdade científica pode não ser tão custosa, mas sua beneficência é tão pequena que não vale a pena ser empregada. Ou ainda: pode ser barata, relativamente eficiente, mas sua maleficência é tão alta que se torna contraindicada;
• O “câncer”, na verdade, são várias doenças que tanto têm coisas em comum como totalmente diferentes. Cada tipo apresenta características únicas e o que é verdade para um não necessariamente é aplicável para outro;
• O câncer de próstata é o segundo mais comum entre os homens. Entretanto, os métodos utilizados para o rastreamento do câncer de próstata (dosagem do PSA, toque retal, ultrassonografia transretal e biópsias transretais) estão em total contradição com o perfil de métodos de rastreamento ideal;
• A grande maioria dos cânceres de próstata crescem de forma tão lenta (cerca de 15 anos para atingir 1 cm3) que não chegam a dar sinais e nem a ameaçar a saúde do homem. Quanto aos que crescem rapidamente, mesmo um diagnóstico antecipado pode ser tarde demais;
• Seu tratamento cirúrgico, além de penoso, com mortalidade não desprezível, deixa sequelas importantes, principalmente a impotência sexual, em torno de 60%, e a incontinência urinária, em torno de 35%;
• Revisões sistemáticas, utilizando os dados agregados disponíveis na literatura, não demonstram vantagens na realização de screening para o câncer de próstata;
• Os grandes e tão esperados megatrials (pesquisas com randomização rigorosa, com grande número de pacientes e longo acompanhamento temporal) não demonstraram resultados que subsidiem um rastreamento sistemático. Vale ressaltar que no grande trial americano, surpreendentemente, o grupo que se submeteu ao rastreamento teve mortalidade bastante superior ao grupo que não realizou o screening para o câncer de próstata;
• Por todas essas razões, a Organização Mundial da Saúde não recomenda o rastreamento para o diagnóstico precoce do câncer de próstata;
• Por todas essas razões, o Instituto Nacional de Câncer (INCA) não recomenda o rastreamento para o diagnóstico precoce do câncer de próstata;
• Por todas essas razões, a quase totalidade dos países europeus não realiza e não recomenda o rastreamento para o diagnóstico precoce do câncer de próstata;
• Os profissionais de saúde e, principalmente, a população têm o direito de serem informados sobre tudo isso;
• Um paciente só deve se submeter a um rastreamento para o câncer de próstata após ter oferecido, por escrito, seu consentimento livre e esclarecido sobre o acima exposto, para garantirmos que efetivamente está exercendo sua autonomia bioética.
Por seu turno, o CREMEPE encaminha o Ofício nº 42/2011 ao dr. Roberto d’Avila, presidente do Conselho Federal de Medicina, solicitando pronúncia técnica sobre o assunto.
Dos fundamentos científicos
O rastreamento de neoplasia maligna (screening) pode ser definido como a aplicação de exames para detectar uma condição ou doença potencial, em pessoa sem qualquer sinal ou sintoma 1. Pode ser concebido como política de saúde pública, de base populacional, realizada por convocação a determinada população- alvo, objetivando a detecção precoce de enfermidade específica, ou, ao que chamamos de rastreamento espontâneo, uma manifestação de vontade própria dos indivíduos com o mesmo fim 2.
São objetivos fundamentais de um rastreamento de base populacional:
1. A redução da mortalidade específica, ou seja, causada pela doença a ser rastreada;
2. A redução da morbidade associada com a doença a ser rastreada;
3. A redução dos custos associados com a doença rastreada, se sintomática 3.
A princípio, os critérios aceitos para a defesa de um programa de rastreamento populacional são especificamente: a doença deve ter alta incidência na população a ser rastreada; o seu comportamento biológico e história natural devem ser conhecidos; os testes (exames) a serem utilizados devem ter alta sensibilidade, alta especificidade e alto valor preditivo positivo, devendo ser baratos, de rápida aplicação, não invasivos e, ainda, aceitos pela população. Talvez o mais importante: um tratamento altamente eficaz e aceitável para tratar a doença diagnosticada precocemente 1.
No rastreamento para câncer, o que se busca é a detecção precoce da doença, transformando o que seria um paciente incurável em curável, por terapia efetiva, resultando em redução da mortalidade e custos 4.
Em um programa de rastreamento alguns passos são fundamentais: identificar a população-alvo (de risco para a doença); convocar as pessoas para se submeterem aos exames; administrar os testes; assegurar o diagnóstico para os positivos ao teste e, finalmente, garantir um tratamento eficaz para os que apresentem diagnóstico da doença 4.
Nos dias de hoje, somente dois programas de base populacional para detecção precoce de câncer são aceitos universalmente: o teste de Papanicolaou (descoberto por George Papanicolaou na década de 40) para o câncer de colo uterino e a mamografia (introduzida na década de 70) para o câncer de mama.
A idéia de programas de rastreamento para câncer de próstata surgiu nos Estados Unidos da América na década de 90, utilizando a dosagem sérica do antígeno prostático específico (PSA) e o exame retal digital (ERD) 5.
A utilidade clínica do PSA é o seu potencial para identificar um grupo de homens assintomáticos com câncer de próstata localizado, que se beneficiariam de tratamento radical. Antes do surgimento deste exame, apenas 27% dos pacientes eram diagnosticados com doença localizada (curável); hoje, mais de 90% dos pacientes são diagnosticados nessa fase 3,6.
O ERD é componente essencial na avaliação do câncer de próstata. No entanto, a maioria dos pacientes diagnosticados em programas de rastreamento tem doença impalpável 6.
O PSA tem sensibilidade de 82% e especificidade de 52%, enquanto o ERD tem sensibilidade de 62% e especificidade de 93%. Embora o PSA tenha alto valor preditivo positivo para o câncer de próstata, seu uso isolado sem o ERD não é recomendado porque 25% dos homens com esta doença têm PSA com valor considerado normal. Os dois exames, em conjunto, se aproximam do que se considera o teste ideal para um programa de rastreamento, ou seja, aquele com alta sensibilidade, alta especificidade, alto valor preditivo positivo e alto valor preditivo negativo 6,7.
Com os exames atualmente disponíveis o câncer de próstata pode ser diagnosticado em um estádio precoce, enquanto localizado (confinado à glândula), permitindo sua cura por prostatectomia radical ou radioterapia. Isto poderia atender aos princípios que norteiam os programas de rastreamento de base populacional, haja vista o potencial de redução da morbidade e mortalidade 8.
Que princípios e/ou postulados a enfermidade deve atender para que um programa de rastreamento de base populacional lhe seja adequado? Há princípios gerais bem definidos que garantem, quando atendidos, a viabilidade técnica e ética desses programas.
Discutiremos cada um destes princípios gerais enfocando, no particular, o câncer de próstata.
A doença deve ser um importante problema de saúde pública. Ela deve ter graves consequências: morbidade e mortalidade significantes.
Sob a perspectiva da saúde pública, alocar recursos para rastreamento populacional só é justificável quando a doença é comum 9.
O câncer de próstata é o tumor mais comumente diagnosticado no sexo masculino e a segunda causa de morte por doença maligna em homens no mundo ocidental 6.
Embora não uniforme para todos os tumores prostáticos, há significante risco para progressão, metástases e morte para os portadores dessas neoplasias, quando diagnosticadas clinicamente, com os terríveis sofrimentos que advêm com a doença avançada 10.
Há adequado conhecimento da história natural da doença, com reconhecido período de latência ou estádio sintomático precoce.
A história natural do câncer de próstata detectado por programas de rastreamento é pouco conhecida. Ademais, muitos dos diagnosticados em fases mais tardias progridem lentamente e acabam morrendo por outras causas: morrem com a doença, mais do que devido a ela 6.
Uma proporção de tumores de próstata diagnosticados por rastreamento pode não tornar-se clinicamente significante. 11 Somente um em oito cânceres de próstata detectados por rastreamento pode vir a causar a morte do paciente, se deixado sem tratamento 6.
Há que existir uma fase pré-clínica reconhecida quando o câncer pode ser detectado, para que se justifique programas de rastreamentos populacionais9. O câncer de próstata atende a essa última exigência.
Há um teste de rastreamento simples, aceitável, preciso, validado e seguro.
Testes de rastreamento são em geral aplicados para pessoas com baixo risco para o câncer. Por isso, devem ser excepcionalmente seguros. A questão da segurança deve estar além dos testes iniciais, contemplando os testes adicionais 9.
Por exemplo, no caso presente do câncer de próstata, o PSA e o exame retal digital são simples, aceitáveis, precisos, validados e seguros (taxas de sensibilidade e especificidade aceitáveis). No entanto, essas qualidades, incluindo a segurança, devem estender-se para a biópsia prostática, que é o exame seguinte, indicado para os pacientes com testes iniciais positivos.
A biópsia prostática estendida (12 fragmentos) tem sensibilidade próxima de 80% a 90% (taxa de falso-negativa de 10% a 20%) e especificidade de 100% (0% de falso- positivos). Está associada com segurança razoável e baixo risco de complicações significativas 12,13.
Um teste de rastreamento ideal tem alta sensibilidade, alta especificidade, alto valor preditivo positivo e alto valor preditivo negativo.
Ainda não se sabe, definitivamente, para que faixa etária oferecer programas de rastreamento para o câncer prostático. Uma coisa é certa, a população a ser rastreada deve ter a perspectiva de aumentar sua expectativa e qualidade de vida. Por isso, é inapropriado que seja feito para pessoas com baixa expectativa de vida e comorbidades significativas 6.
Deve existir um tratamento ou intervenção médica efetivos.
Para justificar programas de rastreamento de neoplasia maligna, um tratamento deve existir e ser ainda mais efetivo quando aplicado durante o intervalo pré-sintomático. E somente serão úteis se para a detecção durante a fase pré-clínica, aplicada à terapia adequada, adiarem a morte e prolongarem a vida.9
O câncer de próstata localizado pode ser tratado convencionalmente por prostatectomia radical, radioterapia radical (incluindo braquiterapia) e monitoração ativa, e acompanhamento sistemático no passado 6.
Estudo recentemente publicado comparou a prostatectomia radical com o acompanhamento sistemático para pacientes diagnosticados com câncer de próstata em estádio precoce, e demonstrou que a cirurgia diminui a mortalidade câncer específica e a taxa de progressão 14.
Há definição baseada em evidências que responda às perguntas: quem deve ser tratado e como tratar?
Correntemente, é difícil distinguir dentre os portadores de câncer de próstata diagnosticados precocemente aqueles que irão progredir (a doença avançar e ameaçar suas vidas) ─ necessitando tratamento ─ e aqueles que permanecerão com a doença indolente, ou seja, sem progressão e sem repercussão clínica ─ portanto, sem a imperiosa necessidade de tratamento 6.
O desenvolvimento da biologia molecular combinada com os avanços dos desenhos do que chamamos nomogramas para avaliação dos riscos futuros da neoplasia prostática, pelo potencial de separar o tumor perigoso daquele indolente, poderá aumentar os benefícios de programas de rastreamento, em seu devido tempo 15.
Há evidências oriundas de ensaios clínicos de alta qualidade, randomizados e controlados, que demonstrem que os programas de rastreamento reduzem a mortalidade ou a morbidade da doença a ser rastreada.
As mais fortes evidências da eficácia de qualquer programa de rastreamento são buscadas em estudos clínicos randomizados e controlados. No caso do câncer de próstata, dois grandes ensaios clínicos randomizados, um americano (The American Prostate, Lung, Colorectal, and Ovarian Cancer Screening Trial - PLCO) e outro europeu (European Randomized Study of Screening for Prostate Cancer - ERSPC), foram iniciados no princípio da década de 90 16.
Finalmente, em 2009, os tão esperados resultados desses dois estudos foram publicados. Infelizmente, ficaram longe de ser definitivos. O PLCO foi negativo e o ERSPC mostrou apenas pequena melhora na sobrevida dos pacientes do grupo rastreado, não conclusivamente atribuída ao rastreamento17,18.
O PLCO, de 1993 a 2001, inscreveu 76.693 homens com 55 a 74 anos. Contudo, ocorreu um erro básico: no mínimo 50% das pessoas do grupo-controle submeteram-se a exames de PSA, o que prejudicou a avaliação final dos resultados. Em sete anos de seguimento o programa levou a um aumento significativo de detecção de câncer prostático: 2.820 no grupo rastreado e 2.322 no grupo-controle. Poucas mortes devidas ao câncer ocorreram: 50 no grupo rastreado e 44 no grupo-controle. Em relação à mortalidade, o estudo falhou em demonstrar benefício para os pacientes rastreados 16.
O ERSPC, por sua vez, de 1991 a 2003 recrutou pessoas de vários países europeus. Foram 182.160 habitantes, entre 50 e 74 anos. O desenho metodológico foi complicado: incluiu indivíduos da Finlândia, Suécia e Itália, com base em registros populacionais, e com base em consentimentos individuais pessoas da Holanda, Bélgica, Suíça e Espanha. Adicionalmente, o exame de PSA foi utilizado a cada dois anos para os da Suécia e a cada quatro anos para os de outros países. O limite para indicar a biópsia foi de 3 ng/ml. Alguns países incorporaram variavelmente, ao longo do tempo, o exame retal digital, a velocidade de PSA, o percentual de PSA livre e a ultrassonografia. O seguimento do estudo foi de 9 anos, em média 16.
No grupo de pessoas rastreadas o ERSPC mostrou redução estatisticamente significante na mortalidade por câncer de próstata. A detecção da neoplasia foi 70% maior nesse grupo, com redução de 20% na mortalidade. O estudo revelou pela primeira vez, com prova convincente, que o rastreamento pode levar a redução do risco de morrer por câncer de próstata 19. No entanto, o benefício foi modesto: a redução absoluta de risco foi somente de 0,71/1.000 homens rastreados, implicando que 1.410 pessoas necessitavam ser rastreadas aproximadamente duas vezes em nove anos, para prevenir uma morte por câncer de próstata. No total, 48 homens tinham que ser diagnosticados com câncer de próstata para prevenir uma morte16.
Em comparação com o câncer de mama, um programa adotado universalmente, somente 10 mulheres precisam ser diagnosticadas por mamografia para prevenir uma morte 20.
Há evidência de que o programa completo de rastreamento, incluindo os exames iniciais, os procedimentos diagnósticos e a intervenção terapêutica, é clínica, social e eticamente aceitável.
No caso em discussão, câncer de próstata, esses exames incluiriam o PSA e o exame retal digital (exames iniciais), a biópsia prostática guiada por ultrassonografia transretal (procedimento diagnóstico) e a prostatectomia ou radioterapia, radicais (intervenção terapêutica).
Correntemente, não há programa de rastreamento para o câncer prostático, de base populacional, implementado em qualquer país 6.
Os dados científicos demonstram que, mesmo na ausência de tratamento, um diagnóstico de câncer de próstata está associado com morbidade significativa. A biópsia prostática não é totalmente inócua: apesar de relativamente segura, é invasiva e carreia um risco potencial, embora pequeno, de complicações 3.
Ademais, há o problema do hiperdiagnóstico, ou seja, o diagnóstico desnecessário, o diagnóstico de doença subclínica, aquela determinada a não ter manifestação clínica alguma (ocorre no câncer prostático). O dilema é: dada a inabilidade científica atual de distinguir entre o câncer de próstata com alto potencial de progredir e matar o paciente e o câncer indolente, inofensivo, o hiperdiagnóstico conduz a hipertratamento 21.
Esse hipertratamento, obviamente, causa um custo desnecessário para o sistema de saúde, com significante morbidade e, possivelmente, mortalidade para alguns pacientes expostos ao tratamento curativo, que não necessitariam, a rigor, fazê-lo 3.
Esses pacientes que não necessitam se tratar, mesmo que o médico assistente, com os dados que hoje dispõe, infira isso e lhes informe, no final preferem se operar, devido à ansiedade de serem portadores de uma doença maligna: 90% dos homens diagnosticados com câncer de próstata decidem por terapia definitiva 3.
A aceitabilidade universal de programas de rastreamento para o câncer de próstata ainda hoje convive com esse dilema: há real benefício, quando analisados os custos e os potenciais riscos, para os indivíduos?
Há evidência de que o benefício final do rastreamento ultrapassa os riscos físicos e psicológicos.
O benefício buscado, a princípio, por um programa de rastreamento para o câncer de próstata consistiria na redução da mortalidade específica, na melhoria da qualidade de vida e na redução da morbidade causada pela doença 6.
No mínimo, a metade dos pacientes submetidos à prostatectomia radical e a tratamentos radioterápicos para curar o câncer de próstata sofre de algum tipo de angústia devido à deterioração da qualidade de vida. Uma proporção um pouco menor, porém também significativa, das esposas dessas pessoas também sofre sentimento semelhante 22.
Na verdade, considerando a morbidade do tratamento do câncer de próstata, como evidenciado pela deterioração da qualidade de vida para os pacientes e suas esposas, e o significante número de tratamentos desnecessários, o benefício final do rastreamento para o câncer de próstata, de base populacional, ainda permanece incerto 3.
Das questões éticas envolvidas
O rastreamento (screening) para o câncer de próstata carreia questões éticas que merecem reflexão.
Em primeiro lugar, o PSA tem baixa especificidade, ou seja, não é específico para o câncer de próstata. Condições outras, como infecções, processos inflamatórios e o próprio crescimento benigno da glândula (hiperplasia prostática benigna), aumentam a concentração sérica de PSA.
Algumas medidas são utilizadas com o objetivo de melhorar a precisão do PSA (sua especificidade e também sua sensibilidade). Os urologistas e clínicos utilizam na investigação a velocidade do PSA (o quanto aumenta em um ano), sua densidade e o percentual de PSA livre sérico; obviamente, usam também o ERD.
Ainda assim, um percentual de pessoas sadias tem esses exames em uma faixa considerada anormal. E o que acontece? Há uma carga de ansiedade para elas. E mais ainda, são submetidas à biópsia prostática (desnecessária, porque sadias).
A biópsia prostática, per si, apresenta pequena taxa de complicações, mas há riscos, incluindo a urosepsis: hematoespermia (45%), hematúria por mais de três dias (25%), dor (8%), febre (4,2%) e necessidade de internação (< 0,5%) 23.
Um segundo problema consequente à realização da biópsia é o diagnóstico do câncer de próstata indolente, isto é, aquele sem atividade, insignificante do ponto de vista clínico, cuja incidência varia entre 9% e 25%.
Como anteriormente citado, os pacientes diagnosticados com câncer de próstata padecem da angústia de possuir uma neoplasia maligna e procuram o tratamento radical. Se portadores de tumores indolentes, será o tratamento necessário?
Portanto, há questões importantes a serem consideradas pelo médico assistente desses pacientes. A biópsia prostática para pacientes posteriormente comprovados como sãos, o excesso de diagnósticos (para tumores indolentes que, a rigor, não necessitariam ser diagnosticados) e, sobretudo, o excesso de tratamento (para os pacientes que rigorosamente não necessitariam ser tratados), com as consequências mórbidas conhecidas sobre o trato genital e urinário.
Antes de submeter um indivíduo a um método de rastreamento para o câncer de próstata, ele deve ser informado sobre os potenciais riscos da biópsia e, sobretudo, do tratamento radical, quando o câncer for diagnosticado (risco de: disfunção erétil, incontinência urinária e alterações intestinais). Ademais, convém lembrar o desconforto da biópsia e os efeitos psicológicos dos resultados falso-positivos do rastreamento 24.
Os métodos atuais de rastreamentos não são perfeitos. Há necessidade de biomarcadores que acuradamente identifiquem aqueles tumores que realmente irão causar, no futuro, morbidade e mortalidade para os pacientes 16. Encontrar meios de discriminar os tumores indolentes daqueles de alto risco e desenvolver tratamentos menos agressivos para os primeiros é o próximo passo 24.
Das recomendações atuais de associações científicas
A American Urological Association (AUA) acredita que a detecção precoce (rastreamento) e uma avaliação de risco para o câncer de próstata devem ser oferecidos a todos os homens assintomáticos, maiores de 40 anos e com expectativa de vida de 10 anos. Aos que o desejem, o rastreamento deverá ser feito com a dosagem sérica de PSA e o exame retal digital.
A decisão de prosseguir com a biópsia prostática deve basear-se não apenas no PSA e ERD, pois devem ser considerados múltiplos fatores, incluindo a relação PSA total e PSA livre, a idade do paciente, a velocidade e densidade do PSA, a história familiar, a etnia, a história de biópsias prévias e as comorbidades.
A AUA recomenda fortemente o consentimento informado antes do rastreamento e a opção de vigilância ativa ao invés de tratamento imediato, para certos homens diagnosticados com câncer de próstata considerados indolentes 25.
O manual The guide to clinical preventive services 2010-2011 - Recommendations of the United States Preventive Services Task Force, resume na página 48 que as evidências atuais são insuficientes para se precisar um balanço entre os benefícios e os riscos de um rastreamento para o câncer de próstata, para homens com idade inferior a 75 anos.
Os médicos devem discutir esse problema com os pacientes, focando os possíveis danos do rastreamento e da terapêutica: disfunção erétil, incontinência urinária e impacto na qualidade de vida.
Para a faixa etária acima de 75 anos, não se recomenda a realização de rastreamentos 26.
A American Cancer Society recomenda que o rastreamento para o câncer de próstata deve ser feito para homens a partir dos 50 anos e com expectativa de vida de no mínimo 10 anos; a partir dos 45 anos, para os afro-americanos ou os que tenham parente de 1º grau (pai, irmão ou filho) diagnosticado com câncer de próstata; e aos 40 anos, para aqueles com vários parentes de 1º grau diagnosticados com câncer de próstata ─ em ambos os casos, enquanto ainda jovens.
A decisão deve ser feita pela pessoa interessada, após obter todas as informações de seu médico acerca das incertezas, riscos e benefícios potenciais do rastreamento. Os homens não devem ser rastreados sem que tenham pleno conhecimento. Após o que, devem realizar a dosagem sérica do PSA e, também, o exame retal digital 27.
O Instituto Nacional de Câncer assim se posiciona: a detecção precoce de um câncer é composta por ações que visam ao diagnóstico precoce da doença em indivíduos sintomáticos e por ações de rastreamento, que é a aplicação de exames para a detecção da doença em indivíduos assintomáticos. A decisão do uso do rastreamento para o câncer de próstata como estratégia de saúde pública deve basear-se em evidências científicas de qualidade. No momento, não existem evidências de que identifique indivíduos que necessitam de tratamento, ou que esta prática reduza a mortalidade pertinente. Portanto, o INCA não recomenda o rastreamento para o câncer de próstata e continuará acompanhando o debate científico sobre o tema, podendo rever sua posição quando os resultados dos estudos multicêntricos em curso estiverem disponíveis 28.
A Sociedade Brasileira de Urologia recomenda a realização anual do exame retal digital e da dosagem sérica de PSA para homens acima de 50 anos. Para aqueles com história familiar ou da raça negra, para 45 anos 29.
A publicação Guidelines on prostate câncer, da European Association of Urology, de 2011, reporta-se desta forma sobre o tema: “com base nas últimas evidências, muitas, se não todas, as maiores sociedades europeias de urologia concluem que, no presente, rastreamentos de base populacional para o câncer de próstata não são apropriados. No entanto, o rastreamento individual, espontâneo, deve ser oferecido a homens bem informados.”
Duas questões básicas permanecem abertas e empíricas: com que idade se deve iniciar esses rastreamentos e qual o intervalo para o ERD e o PSA.Um início aos 40 anos tem sido sugerido. A partir de então, um subsequente intervalo deve ser definido.
Um intervalo de oito anos poderia ser o bastante para homens com PSA inicial < 1,0 ng/ml. Idosos acima de 75 anos, com PSA < 3 ng/ml, não deveriam ser rastreados devido ao baixo risco de morrerem de câncer de próstata 30.
Das considerações finais
O câncer de próstata é importante problema de saúde pública. Nos Estados Unidos da América, é o tumor visceral mais frequentemente diagnosticado e a segunda causa de morte por neoplasia maligna em homens 16.
No Brasil, segundo dados do INCA, é o segundo tumor maligno mais comum em homens (atrás apenas do câncer de pele não melanoma), com estimativa de 52.350 novos casos para 2010 28. Os últimos anos apresentaram aumento nas taxas de incidência, o que pode ser parcialmente justificado pela evolução dos métodos diagnósticos (exames), melhoria na qualidade dos sistemas de informação do país e aumento na expectativa de vida da população brasileira 28.
Embora a maioria das neoplasias malignas da próstata cresça de forma lenta, alguns casos progridem rapidamente, disseminando-se para os ossos e outras estruturas, causando sofrimento intenso e ameaçando a vida, conduzindo à morte.
Como podemos intervir para amenizar os efeitos deletérios desta neoplasia maligna sobre os homens? O diagnóstico precoce seria a forma, haja vista que não há prevenção primária para essa doença.
O câncer prostático tem seu diagnóstico precoce efetivado por métodos de rastreamento (screening): o populacional, medida de saúde pública, pontual, realizado por convocação à coletividade, objetivando que os indivíduos-alvo se submetam a exames; ou o espontâneo, manifestação própria do homem que quer detectar o tumor precocemente 2.
Programas de rastreamento populacional para o câncer de próstata são ainda questão controversa. As evidências atuais, originadas de estudos clínicos de qualidade até hoje publicados, incluindo o PLCO e o ERSPC, mostram apenas benefícios limitados quando comparados com a significante morbidade psicológica e física para os indivíduos, mas com altos custos sociais 3.
Programas de rastreamento espontâneo para o câncer de próstata devem ser estimulados (não há dúvida de que conduziram à queda da mortalidade pertinente, em diversas regiões do mundo), em vista da possibilidade do diagnóstico precoce da doença, permitindo o tratamento curativo 3.
Para quem deve ser aplicado o rastreamento espontâneo? Ele deve ser oferecido aos homens com maior potencial de benefício advindo do tratamento, quando o câncer for detectado. Esforços devem ser focados no tocante à melhoria da metodologia do rastreamento, visando identificar maior proporção de cânceres destinados a tornarem-se sintomáticos e ameaçadores à vida 3.
Para a população brasileira, início aos 45 anos e término aos 70 anos (ou 75 anos). Adicionalmente, deve-se oferecer ao paciente a opção de não tratamento para os casos de baixo risco, bem como adequar o intervalo de exame de PSA e ERD de acordo com a concentração inicial de PSA e os antecedentes familiares 2.
DA CONCLUSÃO
As atuais evidências científicas apontam para uma indefinição sobre o rastreamento (screening) de base populacional para o câncer de próstata. Portanto, programas de saúde pública para este fim não devem ainda ser recomendados.
Em paralelo, o rastreamento espontâneo deve ser estimulado, pois tem permitido, devido à possibilidade do diagnóstico precoce, a queda da mortalidade pelo câncer de próstata em diversos países, Porém, algumas questões devem ser valorizadas. O médico, ao recomendar o screeningespontâneo, individual, deve fazê-lo com critérios científicos e racionais. Para tanto, deve bem sopesar os riscos inerentes aos procedimentos, incluindo a biópsia prostática e, sobretudo, os riscos dos diagnósticos e tratamentos desnecessários (para os tumores indolentes).
O profissional de medicina (o clínico, o urologista) necessita, com base nas evidências científicas, estratificar o risco individual de seu paciente, com o fim de não indicar tratamentos desnecessários e disponibilizar a terapêutica ideal para aqueles que mais precisem.
Por fim, o mais importante, o senso comum: o paciente deve receber de seu médico todas as informações necessárias sobre os riscos e benefícios do rastreamento e da terapêutica para o câncer de próstata, para que, suficientemente esclarecido, tome sua própria e livre decisão.
Este é o parecer, SMJ.
Brasília-DF, 12 de agosto de 2011
LÚCIO FLÁVIO GONZAGA SILVA
Conselheiro relator
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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25. Visitado em 3/7/2011 no site: www.auanet.org.
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27. Visitado em 3/7/2011 no site: www.cancer.org.
28. Visitado em 3/7/2011 no site: www.inca.gov.br.
29. Visitado em 3/7/2011 no site: www.sbu.org.br.
30. European Association of Urology. Guidelines on prostate cancer 2011.
INTERESSADO: CRM-PE
ASSUNTO: Rastreamento para detecção precoce de câncer de próstata
RELATOR: Cons. Lúcio Flávio Gonzaga Silva
EMENTA: As atuais evidências científicas apontam para uma indefinição sobre o rastreamento de base populacional para o câncer de próstata. O rastreamento espontâneo, individual, deve ser estimulado devido à possibilidade do diagnóstico precoce, possibilitando sua cura e consequente queda da mortalidade específica.
DA CONSULTA
O Ministério Público do Estado de Pernambuco encaminha por sua Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania – Promoção e Defesa da Saúde – o ofício nº 1.173/2010 - PIP 0030/2010 - 11ª PJS ao presidente do CREMEPE, dr. A. L., datado de 16 de dezembro de 2010 e assinado pela MM promotora de Justiça dra. M. I. B. V. S., nos termos: “Solicito a V.Sa. que encaminhe a esta Promotoria de Justiça (...) informações acerca da orientação técnica desse órgão sobre o rastreamento para detecção precoce do câncer de próstata, diante do contido no documento em anexo (...)”.
Documento anexo
Reflexões éticas e bioéticas acerca do rastreamento (screening) e do tratamento do câncer de próstata (documento encaminhado por e-mail por A.M. para a dra. I.B.).
• Rastreamento (screening) é a detecção precoce de um câncer, intervenção voltada para pessoas sem nenhum sintoma e aparentemente saudáveis (OMS);
• Um exame ideal de screening deve ser simples, eficiente, de baixo custo e com pouca ou nenhuma morbidade ou desconforto;
• Uma doença só deve ser rastreada se o diagnóstico precoce modificar o seu prognóstico, tanto em relação à morbidade quanto à mortalidade, ou pelo menos o sofrimento por ela causado;
• O princípio hipocrático “Primum non nocere” (primeiro não fazer o mal, primeiro não ser iatrogênico) nos alerta para o risco que as intervenções de saúde possuem tanto para o bem quanto para o mal de nossos pacientes. O princípio bioético da não maleficência é uma nova versão desse antigo adágio;
• A medicina é tanto arte quanto ciência. Entretanto, a arte é adaptar para um indivíduo de características únicas a verdade científica provisória;
• Uma verdade científica provisória é obtida quando um pool de trabalhos, bem desenhados metodologicamente, realizado por grupos independentes, obtêm resultados semelhantes. Assim como uma andorinha só “não faz verão”, apenas um único trabalho, ou alguns trabalhos com limitações metodológicas, “não faz verdade científica”;
• A ética e a bioética indicam que após termos obtido a verdade científica (na área em tela, medicina baseada em evidências) temos que analisar o custo, a beneficência e a maleficência da aplicação, nos seres humanos, dessa verdade científica provisória. Uma intervenção cientificamente comprovada pode ter custo tão expressivo que pode inviabilizar uma série de ações tão ou mais efetivas do que a verdade científica proposta;
• Uma verdade científica pode não ser tão custosa, mas sua beneficência é tão pequena que não vale a pena ser empregada. Ou ainda: pode ser barata, relativamente eficiente, mas sua maleficência é tão alta que se torna contraindicada;
• O “câncer”, na verdade, são várias doenças que tanto têm coisas em comum como totalmente diferentes. Cada tipo apresenta características únicas e o que é verdade para um não necessariamente é aplicável para outro;
• O câncer de próstata é o segundo mais comum entre os homens. Entretanto, os métodos utilizados para o rastreamento do câncer de próstata (dosagem do PSA, toque retal, ultrassonografia transretal e biópsias transretais) estão em total contradição com o perfil de métodos de rastreamento ideal;
• A grande maioria dos cânceres de próstata crescem de forma tão lenta (cerca de 15 anos para atingir 1 cm3) que não chegam a dar sinais e nem a ameaçar a saúde do homem. Quanto aos que crescem rapidamente, mesmo um diagnóstico antecipado pode ser tarde demais;
• Seu tratamento cirúrgico, além de penoso, com mortalidade não desprezível, deixa sequelas importantes, principalmente a impotência sexual, em torno de 60%, e a incontinência urinária, em torno de 35%;
• Revisões sistemáticas, utilizando os dados agregados disponíveis na literatura, não demonstram vantagens na realização de screening para o câncer de próstata;
• Os grandes e tão esperados megatrials (pesquisas com randomização rigorosa, com grande número de pacientes e longo acompanhamento temporal) não demonstraram resultados que subsidiem um rastreamento sistemático. Vale ressaltar que no grande trial americano, surpreendentemente, o grupo que se submeteu ao rastreamento teve mortalidade bastante superior ao grupo que não realizou o screening para o câncer de próstata;
• Por todas essas razões, a Organização Mundial da Saúde não recomenda o rastreamento para o diagnóstico precoce do câncer de próstata;
• Por todas essas razões, o Instituto Nacional de Câncer (INCA) não recomenda o rastreamento para o diagnóstico precoce do câncer de próstata;
• Por todas essas razões, a quase totalidade dos países europeus não realiza e não recomenda o rastreamento para o diagnóstico precoce do câncer de próstata;
• Os profissionais de saúde e, principalmente, a população têm o direito de serem informados sobre tudo isso;
• Um paciente só deve se submeter a um rastreamento para o câncer de próstata após ter oferecido, por escrito, seu consentimento livre e esclarecido sobre o acima exposto, para garantirmos que efetivamente está exercendo sua autonomia bioética.
Por seu turno, o CREMEPE encaminha o Ofício nº 42/2011 ao dr. Roberto d’Avila, presidente do Conselho Federal de Medicina, solicitando pronúncia técnica sobre o assunto.
Dos fundamentos científicos
O rastreamento de neoplasia maligna (screening) pode ser definido como a aplicação de exames para detectar uma condição ou doença potencial, em pessoa sem qualquer sinal ou sintoma 1. Pode ser concebido como política de saúde pública, de base populacional, realizada por convocação a determinada população- alvo, objetivando a detecção precoce de enfermidade específica, ou, ao que chamamos de rastreamento espontâneo, uma manifestação de vontade própria dos indivíduos com o mesmo fim 2.
São objetivos fundamentais de um rastreamento de base populacional:
1. A redução da mortalidade específica, ou seja, causada pela doença a ser rastreada;
2. A redução da morbidade associada com a doença a ser rastreada;
3. A redução dos custos associados com a doença rastreada, se sintomática 3.
A princípio, os critérios aceitos para a defesa de um programa de rastreamento populacional são especificamente: a doença deve ter alta incidência na população a ser rastreada; o seu comportamento biológico e história natural devem ser conhecidos; os testes (exames) a serem utilizados devem ter alta sensibilidade, alta especificidade e alto valor preditivo positivo, devendo ser baratos, de rápida aplicação, não invasivos e, ainda, aceitos pela população. Talvez o mais importante: um tratamento altamente eficaz e aceitável para tratar a doença diagnosticada precocemente 1.
No rastreamento para câncer, o que se busca é a detecção precoce da doença, transformando o que seria um paciente incurável em curável, por terapia efetiva, resultando em redução da mortalidade e custos 4.
Em um programa de rastreamento alguns passos são fundamentais: identificar a população-alvo (de risco para a doença); convocar as pessoas para se submeterem aos exames; administrar os testes; assegurar o diagnóstico para os positivos ao teste e, finalmente, garantir um tratamento eficaz para os que apresentem diagnóstico da doença 4.
Nos dias de hoje, somente dois programas de base populacional para detecção precoce de câncer são aceitos universalmente: o teste de Papanicolaou (descoberto por George Papanicolaou na década de 40) para o câncer de colo uterino e a mamografia (introduzida na década de 70) para o câncer de mama.
A idéia de programas de rastreamento para câncer de próstata surgiu nos Estados Unidos da América na década de 90, utilizando a dosagem sérica do antígeno prostático específico (PSA) e o exame retal digital (ERD) 5.
A utilidade clínica do PSA é o seu potencial para identificar um grupo de homens assintomáticos com câncer de próstata localizado, que se beneficiariam de tratamento radical. Antes do surgimento deste exame, apenas 27% dos pacientes eram diagnosticados com doença localizada (curável); hoje, mais de 90% dos pacientes são diagnosticados nessa fase 3,6.
O ERD é componente essencial na avaliação do câncer de próstata. No entanto, a maioria dos pacientes diagnosticados em programas de rastreamento tem doença impalpável 6.
O PSA tem sensibilidade de 82% e especificidade de 52%, enquanto o ERD tem sensibilidade de 62% e especificidade de 93%. Embora o PSA tenha alto valor preditivo positivo para o câncer de próstata, seu uso isolado sem o ERD não é recomendado porque 25% dos homens com esta doença têm PSA com valor considerado normal. Os dois exames, em conjunto, se aproximam do que se considera o teste ideal para um programa de rastreamento, ou seja, aquele com alta sensibilidade, alta especificidade, alto valor preditivo positivo e alto valor preditivo negativo 6,7.
Com os exames atualmente disponíveis o câncer de próstata pode ser diagnosticado em um estádio precoce, enquanto localizado (confinado à glândula), permitindo sua cura por prostatectomia radical ou radioterapia. Isto poderia atender aos princípios que norteiam os programas de rastreamento de base populacional, haja vista o potencial de redução da morbidade e mortalidade 8.
Que princípios e/ou postulados a enfermidade deve atender para que um programa de rastreamento de base populacional lhe seja adequado? Há princípios gerais bem definidos que garantem, quando atendidos, a viabilidade técnica e ética desses programas.
Discutiremos cada um destes princípios gerais enfocando, no particular, o câncer de próstata.
A doença deve ser um importante problema de saúde pública. Ela deve ter graves consequências: morbidade e mortalidade significantes.
Sob a perspectiva da saúde pública, alocar recursos para rastreamento populacional só é justificável quando a doença é comum 9.
O câncer de próstata é o tumor mais comumente diagnosticado no sexo masculino e a segunda causa de morte por doença maligna em homens no mundo ocidental 6.
Embora não uniforme para todos os tumores prostáticos, há significante risco para progressão, metástases e morte para os portadores dessas neoplasias, quando diagnosticadas clinicamente, com os terríveis sofrimentos que advêm com a doença avançada 10.
Há adequado conhecimento da história natural da doença, com reconhecido período de latência ou estádio sintomático precoce.
A história natural do câncer de próstata detectado por programas de rastreamento é pouco conhecida. Ademais, muitos dos diagnosticados em fases mais tardias progridem lentamente e acabam morrendo por outras causas: morrem com a doença, mais do que devido a ela 6.
Uma proporção de tumores de próstata diagnosticados por rastreamento pode não tornar-se clinicamente significante. 11 Somente um em oito cânceres de próstata detectados por rastreamento pode vir a causar a morte do paciente, se deixado sem tratamento 6.
Há que existir uma fase pré-clínica reconhecida quando o câncer pode ser detectado, para que se justifique programas de rastreamentos populacionais9. O câncer de próstata atende a essa última exigência.
Há um teste de rastreamento simples, aceitável, preciso, validado e seguro.
Testes de rastreamento são em geral aplicados para pessoas com baixo risco para o câncer. Por isso, devem ser excepcionalmente seguros. A questão da segurança deve estar além dos testes iniciais, contemplando os testes adicionais 9.
Por exemplo, no caso presente do câncer de próstata, o PSA e o exame retal digital são simples, aceitáveis, precisos, validados e seguros (taxas de sensibilidade e especificidade aceitáveis). No entanto, essas qualidades, incluindo a segurança, devem estender-se para a biópsia prostática, que é o exame seguinte, indicado para os pacientes com testes iniciais positivos.
A biópsia prostática estendida (12 fragmentos) tem sensibilidade próxima de 80% a 90% (taxa de falso-negativa de 10% a 20%) e especificidade de 100% (0% de falso- positivos). Está associada com segurança razoável e baixo risco de complicações significativas 12,13.
Um teste de rastreamento ideal tem alta sensibilidade, alta especificidade, alto valor preditivo positivo e alto valor preditivo negativo.
Ainda não se sabe, definitivamente, para que faixa etária oferecer programas de rastreamento para o câncer prostático. Uma coisa é certa, a população a ser rastreada deve ter a perspectiva de aumentar sua expectativa e qualidade de vida. Por isso, é inapropriado que seja feito para pessoas com baixa expectativa de vida e comorbidades significativas 6.
Deve existir um tratamento ou intervenção médica efetivos.
Para justificar programas de rastreamento de neoplasia maligna, um tratamento deve existir e ser ainda mais efetivo quando aplicado durante o intervalo pré-sintomático. E somente serão úteis se para a detecção durante a fase pré-clínica, aplicada à terapia adequada, adiarem a morte e prolongarem a vida.9
O câncer de próstata localizado pode ser tratado convencionalmente por prostatectomia radical, radioterapia radical (incluindo braquiterapia) e monitoração ativa, e acompanhamento sistemático no passado 6.
Estudo recentemente publicado comparou a prostatectomia radical com o acompanhamento sistemático para pacientes diagnosticados com câncer de próstata em estádio precoce, e demonstrou que a cirurgia diminui a mortalidade câncer específica e a taxa de progressão 14.
Há definição baseada em evidências que responda às perguntas: quem deve ser tratado e como tratar?
Correntemente, é difícil distinguir dentre os portadores de câncer de próstata diagnosticados precocemente aqueles que irão progredir (a doença avançar e ameaçar suas vidas) ─ necessitando tratamento ─ e aqueles que permanecerão com a doença indolente, ou seja, sem progressão e sem repercussão clínica ─ portanto, sem a imperiosa necessidade de tratamento 6.
O desenvolvimento da biologia molecular combinada com os avanços dos desenhos do que chamamos nomogramas para avaliação dos riscos futuros da neoplasia prostática, pelo potencial de separar o tumor perigoso daquele indolente, poderá aumentar os benefícios de programas de rastreamento, em seu devido tempo 15.
Há evidências oriundas de ensaios clínicos de alta qualidade, randomizados e controlados, que demonstrem que os programas de rastreamento reduzem a mortalidade ou a morbidade da doença a ser rastreada.
As mais fortes evidências da eficácia de qualquer programa de rastreamento são buscadas em estudos clínicos randomizados e controlados. No caso do câncer de próstata, dois grandes ensaios clínicos randomizados, um americano (The American Prostate, Lung, Colorectal, and Ovarian Cancer Screening Trial - PLCO) e outro europeu (European Randomized Study of Screening for Prostate Cancer - ERSPC), foram iniciados no princípio da década de 90 16.
Finalmente, em 2009, os tão esperados resultados desses dois estudos foram publicados. Infelizmente, ficaram longe de ser definitivos. O PLCO foi negativo e o ERSPC mostrou apenas pequena melhora na sobrevida dos pacientes do grupo rastreado, não conclusivamente atribuída ao rastreamento17,18.
O PLCO, de 1993 a 2001, inscreveu 76.693 homens com 55 a 74 anos. Contudo, ocorreu um erro básico: no mínimo 50% das pessoas do grupo-controle submeteram-se a exames de PSA, o que prejudicou a avaliação final dos resultados. Em sete anos de seguimento o programa levou a um aumento significativo de detecção de câncer prostático: 2.820 no grupo rastreado e 2.322 no grupo-controle. Poucas mortes devidas ao câncer ocorreram: 50 no grupo rastreado e 44 no grupo-controle. Em relação à mortalidade, o estudo falhou em demonstrar benefício para os pacientes rastreados 16.
O ERSPC, por sua vez, de 1991 a 2003 recrutou pessoas de vários países europeus. Foram 182.160 habitantes, entre 50 e 74 anos. O desenho metodológico foi complicado: incluiu indivíduos da Finlândia, Suécia e Itália, com base em registros populacionais, e com base em consentimentos individuais pessoas da Holanda, Bélgica, Suíça e Espanha. Adicionalmente, o exame de PSA foi utilizado a cada dois anos para os da Suécia e a cada quatro anos para os de outros países. O limite para indicar a biópsia foi de 3 ng/ml. Alguns países incorporaram variavelmente, ao longo do tempo, o exame retal digital, a velocidade de PSA, o percentual de PSA livre e a ultrassonografia. O seguimento do estudo foi de 9 anos, em média 16.
No grupo de pessoas rastreadas o ERSPC mostrou redução estatisticamente significante na mortalidade por câncer de próstata. A detecção da neoplasia foi 70% maior nesse grupo, com redução de 20% na mortalidade. O estudo revelou pela primeira vez, com prova convincente, que o rastreamento pode levar a redução do risco de morrer por câncer de próstata 19. No entanto, o benefício foi modesto: a redução absoluta de risco foi somente de 0,71/1.000 homens rastreados, implicando que 1.410 pessoas necessitavam ser rastreadas aproximadamente duas vezes em nove anos, para prevenir uma morte por câncer de próstata. No total, 48 homens tinham que ser diagnosticados com câncer de próstata para prevenir uma morte16.
Em comparação com o câncer de mama, um programa adotado universalmente, somente 10 mulheres precisam ser diagnosticadas por mamografia para prevenir uma morte 20.
Há evidência de que o programa completo de rastreamento, incluindo os exames iniciais, os procedimentos diagnósticos e a intervenção terapêutica, é clínica, social e eticamente aceitável.
No caso em discussão, câncer de próstata, esses exames incluiriam o PSA e o exame retal digital (exames iniciais), a biópsia prostática guiada por ultrassonografia transretal (procedimento diagnóstico) e a prostatectomia ou radioterapia, radicais (intervenção terapêutica).
Correntemente, não há programa de rastreamento para o câncer prostático, de base populacional, implementado em qualquer país 6.
Os dados científicos demonstram que, mesmo na ausência de tratamento, um diagnóstico de câncer de próstata está associado com morbidade significativa. A biópsia prostática não é totalmente inócua: apesar de relativamente segura, é invasiva e carreia um risco potencial, embora pequeno, de complicações 3.
Ademais, há o problema do hiperdiagnóstico, ou seja, o diagnóstico desnecessário, o diagnóstico de doença subclínica, aquela determinada a não ter manifestação clínica alguma (ocorre no câncer prostático). O dilema é: dada a inabilidade científica atual de distinguir entre o câncer de próstata com alto potencial de progredir e matar o paciente e o câncer indolente, inofensivo, o hiperdiagnóstico conduz a hipertratamento 21.
Esse hipertratamento, obviamente, causa um custo desnecessário para o sistema de saúde, com significante morbidade e, possivelmente, mortalidade para alguns pacientes expostos ao tratamento curativo, que não necessitariam, a rigor, fazê-lo 3.
Esses pacientes que não necessitam se tratar, mesmo que o médico assistente, com os dados que hoje dispõe, infira isso e lhes informe, no final preferem se operar, devido à ansiedade de serem portadores de uma doença maligna: 90% dos homens diagnosticados com câncer de próstata decidem por terapia definitiva 3.
A aceitabilidade universal de programas de rastreamento para o câncer de próstata ainda hoje convive com esse dilema: há real benefício, quando analisados os custos e os potenciais riscos, para os indivíduos?
Há evidência de que o benefício final do rastreamento ultrapassa os riscos físicos e psicológicos.
O benefício buscado, a princípio, por um programa de rastreamento para o câncer de próstata consistiria na redução da mortalidade específica, na melhoria da qualidade de vida e na redução da morbidade causada pela doença 6.
No mínimo, a metade dos pacientes submetidos à prostatectomia radical e a tratamentos radioterápicos para curar o câncer de próstata sofre de algum tipo de angústia devido à deterioração da qualidade de vida. Uma proporção um pouco menor, porém também significativa, das esposas dessas pessoas também sofre sentimento semelhante 22.
Na verdade, considerando a morbidade do tratamento do câncer de próstata, como evidenciado pela deterioração da qualidade de vida para os pacientes e suas esposas, e o significante número de tratamentos desnecessários, o benefício final do rastreamento para o câncer de próstata, de base populacional, ainda permanece incerto 3.
Das questões éticas envolvidas
O rastreamento (screening) para o câncer de próstata carreia questões éticas que merecem reflexão.
Em primeiro lugar, o PSA tem baixa especificidade, ou seja, não é específico para o câncer de próstata. Condições outras, como infecções, processos inflamatórios e o próprio crescimento benigno da glândula (hiperplasia prostática benigna), aumentam a concentração sérica de PSA.
Algumas medidas são utilizadas com o objetivo de melhorar a precisão do PSA (sua especificidade e também sua sensibilidade). Os urologistas e clínicos utilizam na investigação a velocidade do PSA (o quanto aumenta em um ano), sua densidade e o percentual de PSA livre sérico; obviamente, usam também o ERD.
Ainda assim, um percentual de pessoas sadias tem esses exames em uma faixa considerada anormal. E o que acontece? Há uma carga de ansiedade para elas. E mais ainda, são submetidas à biópsia prostática (desnecessária, porque sadias).
A biópsia prostática, per si, apresenta pequena taxa de complicações, mas há riscos, incluindo a urosepsis: hematoespermia (45%), hematúria por mais de três dias (25%), dor (8%), febre (4,2%) e necessidade de internação (< 0,5%) 23.
Um segundo problema consequente à realização da biópsia é o diagnóstico do câncer de próstata indolente, isto é, aquele sem atividade, insignificante do ponto de vista clínico, cuja incidência varia entre 9% e 25%.
Como anteriormente citado, os pacientes diagnosticados com câncer de próstata padecem da angústia de possuir uma neoplasia maligna e procuram o tratamento radical. Se portadores de tumores indolentes, será o tratamento necessário?
Portanto, há questões importantes a serem consideradas pelo médico assistente desses pacientes. A biópsia prostática para pacientes posteriormente comprovados como sãos, o excesso de diagnósticos (para tumores indolentes que, a rigor, não necessitariam ser diagnosticados) e, sobretudo, o excesso de tratamento (para os pacientes que rigorosamente não necessitariam ser tratados), com as consequências mórbidas conhecidas sobre o trato genital e urinário.
Antes de submeter um indivíduo a um método de rastreamento para o câncer de próstata, ele deve ser informado sobre os potenciais riscos da biópsia e, sobretudo, do tratamento radical, quando o câncer for diagnosticado (risco de: disfunção erétil, incontinência urinária e alterações intestinais). Ademais, convém lembrar o desconforto da biópsia e os efeitos psicológicos dos resultados falso-positivos do rastreamento 24.
Os métodos atuais de rastreamentos não são perfeitos. Há necessidade de biomarcadores que acuradamente identifiquem aqueles tumores que realmente irão causar, no futuro, morbidade e mortalidade para os pacientes 16. Encontrar meios de discriminar os tumores indolentes daqueles de alto risco e desenvolver tratamentos menos agressivos para os primeiros é o próximo passo 24.
Das recomendações atuais de associações científicas
A American Urological Association (AUA) acredita que a detecção precoce (rastreamento) e uma avaliação de risco para o câncer de próstata devem ser oferecidos a todos os homens assintomáticos, maiores de 40 anos e com expectativa de vida de 10 anos. Aos que o desejem, o rastreamento deverá ser feito com a dosagem sérica de PSA e o exame retal digital.
A decisão de prosseguir com a biópsia prostática deve basear-se não apenas no PSA e ERD, pois devem ser considerados múltiplos fatores, incluindo a relação PSA total e PSA livre, a idade do paciente, a velocidade e densidade do PSA, a história familiar, a etnia, a história de biópsias prévias e as comorbidades.
A AUA recomenda fortemente o consentimento informado antes do rastreamento e a opção de vigilância ativa ao invés de tratamento imediato, para certos homens diagnosticados com câncer de próstata considerados indolentes 25.
O manual The guide to clinical preventive services 2010-2011 - Recommendations of the United States Preventive Services Task Force, resume na página 48 que as evidências atuais são insuficientes para se precisar um balanço entre os benefícios e os riscos de um rastreamento para o câncer de próstata, para homens com idade inferior a 75 anos.
Os médicos devem discutir esse problema com os pacientes, focando os possíveis danos do rastreamento e da terapêutica: disfunção erétil, incontinência urinária e impacto na qualidade de vida.
Para a faixa etária acima de 75 anos, não se recomenda a realização de rastreamentos 26.
A American Cancer Society recomenda que o rastreamento para o câncer de próstata deve ser feito para homens a partir dos 50 anos e com expectativa de vida de no mínimo 10 anos; a partir dos 45 anos, para os afro-americanos ou os que tenham parente de 1º grau (pai, irmão ou filho) diagnosticado com câncer de próstata; e aos 40 anos, para aqueles com vários parentes de 1º grau diagnosticados com câncer de próstata ─ em ambos os casos, enquanto ainda jovens.
A decisão deve ser feita pela pessoa interessada, após obter todas as informações de seu médico acerca das incertezas, riscos e benefícios potenciais do rastreamento. Os homens não devem ser rastreados sem que tenham pleno conhecimento. Após o que, devem realizar a dosagem sérica do PSA e, também, o exame retal digital 27.
O Instituto Nacional de Câncer assim se posiciona: a detecção precoce de um câncer é composta por ações que visam ao diagnóstico precoce da doença em indivíduos sintomáticos e por ações de rastreamento, que é a aplicação de exames para a detecção da doença em indivíduos assintomáticos. A decisão do uso do rastreamento para o câncer de próstata como estratégia de saúde pública deve basear-se em evidências científicas de qualidade. No momento, não existem evidências de que identifique indivíduos que necessitam de tratamento, ou que esta prática reduza a mortalidade pertinente. Portanto, o INCA não recomenda o rastreamento para o câncer de próstata e continuará acompanhando o debate científico sobre o tema, podendo rever sua posição quando os resultados dos estudos multicêntricos em curso estiverem disponíveis 28.
A Sociedade Brasileira de Urologia recomenda a realização anual do exame retal digital e da dosagem sérica de PSA para homens acima de 50 anos. Para aqueles com história familiar ou da raça negra, para 45 anos 29.
A publicação Guidelines on prostate câncer, da European Association of Urology, de 2011, reporta-se desta forma sobre o tema: “com base nas últimas evidências, muitas, se não todas, as maiores sociedades europeias de urologia concluem que, no presente, rastreamentos de base populacional para o câncer de próstata não são apropriados. No entanto, o rastreamento individual, espontâneo, deve ser oferecido a homens bem informados.”
Duas questões básicas permanecem abertas e empíricas: com que idade se deve iniciar esses rastreamentos e qual o intervalo para o ERD e o PSA.Um início aos 40 anos tem sido sugerido. A partir de então, um subsequente intervalo deve ser definido.
Um intervalo de oito anos poderia ser o bastante para homens com PSA inicial < 1,0 ng/ml. Idosos acima de 75 anos, com PSA < 3 ng/ml, não deveriam ser rastreados devido ao baixo risco de morrerem de câncer de próstata 30.
Das considerações finais
O câncer de próstata é importante problema de saúde pública. Nos Estados Unidos da América, é o tumor visceral mais frequentemente diagnosticado e a segunda causa de morte por neoplasia maligna em homens 16.
No Brasil, segundo dados do INCA, é o segundo tumor maligno mais comum em homens (atrás apenas do câncer de pele não melanoma), com estimativa de 52.350 novos casos para 2010 28. Os últimos anos apresentaram aumento nas taxas de incidência, o que pode ser parcialmente justificado pela evolução dos métodos diagnósticos (exames), melhoria na qualidade dos sistemas de informação do país e aumento na expectativa de vida da população brasileira 28.
Embora a maioria das neoplasias malignas da próstata cresça de forma lenta, alguns casos progridem rapidamente, disseminando-se para os ossos e outras estruturas, causando sofrimento intenso e ameaçando a vida, conduzindo à morte.
Como podemos intervir para amenizar os efeitos deletérios desta neoplasia maligna sobre os homens? O diagnóstico precoce seria a forma, haja vista que não há prevenção primária para essa doença.
O câncer prostático tem seu diagnóstico precoce efetivado por métodos de rastreamento (screening): o populacional, medida de saúde pública, pontual, realizado por convocação à coletividade, objetivando que os indivíduos-alvo se submetam a exames; ou o espontâneo, manifestação própria do homem que quer detectar o tumor precocemente 2.
Programas de rastreamento populacional para o câncer de próstata são ainda questão controversa. As evidências atuais, originadas de estudos clínicos de qualidade até hoje publicados, incluindo o PLCO e o ERSPC, mostram apenas benefícios limitados quando comparados com a significante morbidade psicológica e física para os indivíduos, mas com altos custos sociais 3.
Programas de rastreamento espontâneo para o câncer de próstata devem ser estimulados (não há dúvida de que conduziram à queda da mortalidade pertinente, em diversas regiões do mundo), em vista da possibilidade do diagnóstico precoce da doença, permitindo o tratamento curativo 3.
Para quem deve ser aplicado o rastreamento espontâneo? Ele deve ser oferecido aos homens com maior potencial de benefício advindo do tratamento, quando o câncer for detectado. Esforços devem ser focados no tocante à melhoria da metodologia do rastreamento, visando identificar maior proporção de cânceres destinados a tornarem-se sintomáticos e ameaçadores à vida 3.
Para a população brasileira, início aos 45 anos e término aos 70 anos (ou 75 anos). Adicionalmente, deve-se oferecer ao paciente a opção de não tratamento para os casos de baixo risco, bem como adequar o intervalo de exame de PSA e ERD de acordo com a concentração inicial de PSA e os antecedentes familiares 2.
DA CONCLUSÃO
As atuais evidências científicas apontam para uma indefinição sobre o rastreamento (screening) de base populacional para o câncer de próstata. Portanto, programas de saúde pública para este fim não devem ainda ser recomendados.
Em paralelo, o rastreamento espontâneo deve ser estimulado, pois tem permitido, devido à possibilidade do diagnóstico precoce, a queda da mortalidade pelo câncer de próstata em diversos países, Porém, algumas questões devem ser valorizadas. O médico, ao recomendar o screeningespontâneo, individual, deve fazê-lo com critérios científicos e racionais. Para tanto, deve bem sopesar os riscos inerentes aos procedimentos, incluindo a biópsia prostática e, sobretudo, os riscos dos diagnósticos e tratamentos desnecessários (para os tumores indolentes).
O profissional de medicina (o clínico, o urologista) necessita, com base nas evidências científicas, estratificar o risco individual de seu paciente, com o fim de não indicar tratamentos desnecessários e disponibilizar a terapêutica ideal para aqueles que mais precisem.
Por fim, o mais importante, o senso comum: o paciente deve receber de seu médico todas as informações necessárias sobre os riscos e benefícios do rastreamento e da terapêutica para o câncer de próstata, para que, suficientemente esclarecido, tome sua própria e livre decisão.
Este é o parecer, SMJ.
Brasília-DF, 12 de agosto de 2011
LÚCIO FLÁVIO GONZAGA SILVA
Conselheiro relator
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