
PARECER CREMERJ Nº 115/2002
INTERESSADO: Instituto Municipal da Mulher Fernando Magalhães
RELATORES: Cons. Arnaldo Pineschi de Azeredo Coutinho
Comissão de Bioética do CREMERJ
QUESTÕES RELATIVAS À DOAÇÃO DE ÓRGÃOS DE RECÉM-NATO ANENCÉFALO.
EMENTA: Expõe que a atual legislação obsta a utilização do anencefálico como doador enquanto mantiver sinais de vida com respiração espontânea e choro, já que são sinais de funcionamento de seu tronco cerebral e de não caracterização completa de morte encefálica.
CONSULTA: Consulta encaminhada pelo Dr. E. G. C., o qual solicita parecer acerca da situação de pais manifestarem a vontade de fazer doações de órgãos de recém-nato anencéfalo. O profissional médico indaga, ainda, sobre a postura e o procedimento ético do médico, e da Instituição, diante de que a “morte encefálica” é o marco para a captação de órgãos.
PARECER: Com alguma freqüência chegam ao CREMERJ e à Comissão de Bioética questionamentos sobre situações envolvendo a anencefalia e o anencéfalo no que tange à doação de órgãos, principalmente quando a família concorda com a doação.
A condição de anencefalia tem sido alvo de várias e inúmeras discussões envolvendo aspectos médicos, éticos, legais e religiosos.
É um tema interessante, polêmico e controverso que aborda vários aspectos, desde a gestação com as alterações maternas, físicas, psíquicas e fetais, com a discussão sobre o aborto eugênico, não previsto em nossa legislação, até à criança, com discussão sobre a doação de órgãos para transplante.
Por isso é uma situação que ainda provoca as mais variadas e contraditórias opiniões.
Se, por um lado, há aqueles que defendem o direito dos pais de terem esse filho, principalmente pelo apego a esse ser, mesmo sabedores de sua inviabilidade em relação à vida, há, por outro lado, os que defendem a tese do aborto eugênico, tão logo seja constatada a má formação que vai inviabilizar a vida daquele ser.
Do ponto de vista filosófico há, ainda, aqueles que por entenderem que o ser humano começa no instante em que o concepto passa a se relacionar com a mãe, sendo um ser relacional, questionam se no caso da anencefalia haveria efetivamente um "ser", já que esse relacionamento poderia estar comprometido.
Entre essas situações opostas existe uma posição intermediária, fruto de uma visão mais aberta e humanista, onde os próprios pais manifestam a vontade de levar a gravidez do anencéfalo até o final com o objetivo de fazer doação de órgãos daquele recém-nascido.
Essa vontade dos pais mostra claramente o despojamento do egoísmo, realçando o altruísmo, a solidariedade e a generosidade. A posição materna é até mais marcante e, de certa forma, carregada de uma dose de heroísmo, pois vai levar a cabo uma gravidez de onde não terá para si o seu filho e, ainda, assumindo os riscos inerentes, quer sejam de ordem física ou psíquica.
Ao nascimento, observamos que na anencefalia há uma exposição somente de parte do encéfalo já que mesmo ocorrendo algum desenvolvimento dos hemisférios cerebrais, esses são praticamente irreconhecíveis. Não há, assim, uma ausência total do encéfalo. Essa anomalia pode cursar com outras malformações associadas, tais como as craniofaciais, cardíacas e pulmonares, o que pode contribuir para diminuir a sobrevida dessas crianças e até diminuir a disponibilidade de órgãos para transplante.
Porém, estudos já realizados nesse sentido mostraram bons resultados de sobrevida para os receptores de órgãos dessas crianças.
É uma anomalia onde a maioria dos fetos morre ainda na gestação e dos que sobrevivem a maioria morre já no primeiro dia de vida.
Gera um aumento do risco gestacional materno e os tratamentos existentes para o recém-nascido são exclusivamente paliativos, visto que não há nenhum prognóstico de cura.
Numa análise psicológica, sentimental e de sentido de vida, podemos entender que a postura dos pais ao decidirem levar a termo a gestação com propósito de doar os órgãos do recém-nascido anencéfalo, e inviável para a vida, encontra respaldo no entendimento de que tal criança traz em si o produto da união de seus pais e, como doador de órgãos, além de proporcionar uma expectativa de vida para outro ser, viável, também perpetua as características de seus pais em outras crianças.
Essa opção consciente dos pais nos mostra com clareza um exemplo de grandeza de espírito que vem exatamente ao encontro dos conceitos da Bioética, quais sejam a beneficência, a não maleficência e a autonomia, já que se proporcionará um benefício a outrem, sem causar malefício ao anencéfalo e respeitando-se a autonomia que, nessa situação, compete aos pais.
Existem trabalhos científicos que mostram que em um universo de médicos foi observado que a maioria dos entrevistados foi favorável à manutenção da gestação, para que os órgãos fetais possam ser aproveitados, salvando outras vidas.
No contraponto, em minoria, as opiniões contrárias alegam que, como a doação não é um ato rotineiro e que depende da morte encefálica do recém-nascido, a qual só ocorre concomitante à hipoxia tissular, isso seria um fato impeditivo para a doação.
Atualmente há uma lista grande de crianças à espera de órgãos disponíveis para transplantes, sendo que uma parcela também grande dessas crianças morre sem ter a oportunidade da tentativa.
Por isso são importantes todos os esforços feitos no sentido de adequação ética, social e legal para que o anencéfalo deixe de ser um potencial e passe a ser um real doador.
A atual legislação obsta a utilização do anencefálico como doador enquanto mantiver sinais de vida com respiração espontânea e choro, já que são sinais de funcionamento de seu tronco cerebral e de não caracterização completa de morte encefálica.
Porém, há que se perguntar: se não existe atividade encefálica completa, se não existe qualquer forma de relação com o mundo exterior, se seu córtex cerebral está em grande parte destruído, isso não corresponde efetivamente à morte encefálica? Ainda: não corresponde à mesma situação daquele ser que teve encéfalo funcionante e deixou de tê-lo por algum motivo?
A contestação é que enquanto se espera a satisfação dos critérios de morte tronco-cerebral, não se consegue obter órgãos que sejam viáveis para transplantes, muitas das vezes mesmo com suporte de terapia intensiva, já que as repetidas apnéias e bradicardia, típicas desses recém-nascidos, causam lesões hipóxicas e isquêmicas nos órgãos antes da morte. Isso torna limitada a doação de órgãos do anencéfalo.
Muitas idéias e sugestões de protocolos já foram feitas, mas esbarraram nos aspectos legais, principalmente naqueles relacionados à eutanásia, tanto ativa como passiva.
Uma reflexão sobre as leis e o que elas determinam nos leva a pensar que uma lei não se encerra na letra fria de seu texto e sim, traz em seu bojo toda a vivência e a experiência do legislador para que seja aplicada, ou não, em situações onde todas as variáveis sejam analisadas. Isso exprime o espírito da lei e explica o labor do juiz, que deve ter a sensibilidade necessária para aplicar a lei visando o benefício da comunidade e do indivíduo.
Entendemos que a Lei n. 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, e a Resolução do CFM n. 1.480, de 08 de agosto de 1997, sobre morte encefálica, vieram com o espírito de beneficiar todos aqueles em fila de espera, a partir de normas bem definidas que coíbam práticas anti-éticas, ilegais e imorais.
A Comissão de Bioética do CREMERJ, em reunião onde discutiu esse assunto, chegou à conclusão que permitir a doação dos órgãos do anencéfalo, satisfazendo a vontade dos pais, vem exatamente ao encontro do espírito da Lei dos Transplantes, entendendo que o oposto nega tal espírito.
É o parecer, s. m. j.
(Aprovado em Sessão Plenária de 04/12/2002)
Não existem anexos para esta legislação.
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