
PARECER CREMERJ Nº 72/1998
INTERESSADO: Dr. W. R. da S.
RELATOR: Dr. Celso Ferreira Ramos Filho
Câmara Técnica de Doenças Infecciosas e Parasitárias do
CREMERJ
QUESTÕES RELATIVAS À AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL CONTRA LABORATÓRIO MÉDICO, IMPETRADA POR ADVOGADO DE PACIENTE, A QUAL SUBMETEU-SE À REAÇÃO NÃO-TREPONÊMICA PARA SÍFILIS, COM RESULTADO REATIVO, BUSCANDO A PACIENTE REPARAÇÃO JUDICIAL POR ACHAR-SE VÍTIMA DE ERRO MÉDICO.
EMENTA: Dispõe sobre o exame clínico ou laboratorial e sua correta interpretação, notadamente sobre a sensibilidade e especificidade de um teste e a probabilidade anterior, prévia ao teste, de que o paciente tenha a doença ou condição em causa. Discorre acerca dos testes sorológicos treponêmicos e não-treponêmicos para o diagnóstico laboratorial da sífilis. Conclui que um resultado em título baixo em prova reagínica não-treponêmica (como o VDRL) não pode ser interpretado, com segurança, como “significando que a paciente era portadora de sífilis”, mas tão apenas como indicativo desta possibilidade, com maior ou menor grau de probabilidade, necessitando, obrigatoriamente, de confirmação por teste treponêmico (FTA-Abs) e, que todos os gravames apontados no corpo da Ação foram causados, salvo melhor juízo, não pelo resultado do teste do VDRL, e sim pela interpretação comprovadamente errônea que lhe foi dado pela médica solicitante.
CONSULTA: Trata-se de consulta encaminhada por profissional médico, o qual solicita à Câmara Técnica de Doenças Infecciosas e Parasitárias do CREMERJ que avalie o fato ocorrido com a paciente I. da C. M. B., afim de apresentar defesa em Juízo.
PARECER: Trata-se de parecer solicitado pelo Dr. W. R. da S. à Câmara Técnica de Doenças Infecciosas e Parasitárias do CREMERJ. Refere-se a uma paciente em quem uma reação não-treponêmica para sifilis foi reativa. Este resultado não foi repetido na mesma reação e nem confirmado por outras reações em exames realizados em outros laboratórios, que não aquele sob a direção do referido médico. A paciente busca reparação judicial para o que crê um erro médico.
Introdução
Desde meados do Século XIX, vem a Medicina fazendo, crescentemente, uso dos chamados métodos complementares - exames de imagem, microbiológicos, imunológicos e outros. A interpretação de seus resultados não é automática, nem se faz de modo independente da situação clínica que motiva a sua solicitação (1).
Para a correta interpretação de exames (clínicos ou laboratoriais) é necessário conhecer ou estimar as características ditas fixas de seu desempenho diagnóstico. A sensibilidade é a capacidade de um teste, procedimento ou manobra de detectar os indivíduos que realmente apresentem a característica suspeitada. Em outras palavras, é “a proporção dos indivíduos com a doença que tem um teste positivo para a mesma (2)”.
A especificidade é a capacidade de um teste, procedimento ou manobra de detectar os indivíduos que realmente não apresentem a característica suspeitada. Por outros meios: "Especificidade é a proporção de indivíduos sem a doença que tem o teste negativo (3)”.
Em testes que fornecem resultados quantitativos, ou semi-quantitativos, é possível fazer variar os níveis de sensibilidade e de especificidade ao modificar-se o chamado ponto de corte do teste. Por exemplo: se admitimos que o nível máximo (isto é, o limite superior da normalidade) da glicose sangüínea em jejum seja de 110 mg/100 ml teremos uma sensibilidade de 85,7% - e uma correspondente especificidade (de 84, 1%) (4) para fazermos o diagnóstico do diabetes. Todos aqueles com níveis acima do estabelecido terão a doença, enquanto que aqueles com níveis mais baixos estarão isentos.
Entretanto, se subirmos o ponto de corte para 130 mg/100ml estaremos reduzindo a sensibilidade do teste (para 64,3%), e muitas pessoas possivelmente diabéticas serão eliminadas. Por outro lado, nossa especificidade estará aumentada (para 96,9%), e - como a porcentagem indica – a grande maioria dos indivíduos não diabéticos será corretamente identificada como tal.
Ainda, se baixarmos o nosso nível de diagnóstico para 70 mg/100ml, a sensibilidade subirá para 98,6% e quase todos os indivíduos diabéticos serão diagnosticados. Uma desvantagem será aparente: a especificidade cairá para 8,8% e a larga maioria dos não diabéticos será erroneamente rotulada como portadora da doença.
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1 C.F. Ramos Filho: Anais do Seminário Brasil-França de DST/IAIDS, Salvador, novembro de 1996. Coordenação Nacional de DST/AIDS, Ministério da Saúde, Brasília (no prelo).
2 R.H. Fletcher, S.W. Fletcher & E.H. Wagner: Epidemiologia Clínica. Bases Científicas da Conduta Médica. Artes Médicas. Porto Alegre, 1989. p.73.
3 idem p. 74.
4 idem p. 77.
Portanto, a utilidade de um teste variará em função de suas características fixas: sensibilidade e especificidade. Em geral, como acima, ao aumentar-se a sensibilidade, diminui-se a especificidade, e vice-versa.
A estas características, deve-se acrescentar outra: simplificadamente, a probabilidade anterior (probabilidade pré-teste), prévia ao teste, de que o paciente tenha a doença ou condição em causa. Não tentaremos aqui a verificação matemática do Teorema de Bayes (5), que fundamenta este conceito, mas tão somente a sua demonstração intuitiva.
Dado que não existe o teste perfeito, com 100% tanto de sensibilidade quanto de especificidade, é patente que sempre ocorrerão resultados falsos, positivos ou negativos. Quando um teste é solicitado, só o é (ou só deveria sê-lo) em função de uma hipótese diagnóstica, de uma suspeita clínica que o médico pretende comprovar. (Os testes ditos de triagem são utilizados em situações em que apenas considerações sobre a freqüência aleatória de uma condição, ou a sua gravidade intrínseca, geram sua solicitação. Não obstante, não se eximem das condições interpretativas adiante expostas, nem prescindem de testes confirmatórios, que avalizem adiante os seus resultados.)
Imaginemos um paciente com história de comportamento sexualmente licencioso, e com manifestações clínicas de sífilis: é intuitivo que um teste com resultado reagente deverá ser realmente positivo, e um teste não-reagente corresponderá a um resultado falso-negativo.
Por outro lado, consideremos uma senhora de reputação ilibada, de comportamento correto e sem manifestações clínicas sugestivas de sífilis: um teste reagente será quase certamente falso-positivo, e um teste não-reagente indicará o verdadeiro estado desta pessoa em relação à infecção treponêmica - isto é, esta não ocorre.
Portanto, quanto maior for a probabilidade prévia (a impressão clínica inicial) de que o(a) paciente tenha uma doença qualquer, maior será a probabilidade de que o resultado de um teste diagnóstico reagente corresponda à verdade e, portanto, confirme o diagnóstico. Se, por razões várias, um teste é realizado em pessoa com baixa probabilidade pré-teste de ser portadora de uma doença, e seu resultado vem a ser reagente, é mister confirmá-lo por outro teste, procedimento ou resultado: um exemplo familiar, até ao leigo, é o da confirmação de testes ELISA para o vírus da imunodeficiência humana por outro método, como o Western blot, por exemplo, em doadores de sangue.
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5 No entanto, q.v. F.J. Macartney: Diaoiiostie lo,-ic, em Logic iii AIedicipte (C.I. Phülips, editor)- BMJ Miblishing Group.. Londres, 1995. Principalmente pp. 73-88.
O Diagnóstico Laboratorial da Sífilis
Dada a impossibilidade de cultivo do Treponema pallidum, agente da sífilis, o diagnóstico laboratorial da infecção depende o mais das vezes de testes sorológicos. Estes são de dois tipos: os treponêmicos e os não-treponêmicos.
O VDRL (de Venereal Diseases Research Laboratory) é o teste não-treponêmico mais largamente usado. Consiste em uma reação de floculação, na qual o soro aquecido é testado quanto à sua capacidade de aglutinar um antígeno composto de cardiolipina-colesterol-lecitina. Como indicado, nele não são utilizadas como antígenos substâncias oriundas do treponema, mas obtidas de tecidos normais de animais. Portanto, não é – de origem – um teste específico. “il n’est donc pas étonnant de recontrer fréquemment (0,1 à 40%) des épreuves faussemente positives” (6). Muitas doenças e condições podem aumentar a possibilidade de resultados falso-positivos: infecções (como a malária, a tuberculose e a singela catapora), doenças auto-imunes (como certas doenças reumáticas), uso de drogas ilícitas, vacinações, antecedentes de transfusões sangüíneas e mesmo estados fisiológicos, como a gravidez e a idade avançada (até 10% de indivíduos acima de 70 anos, por exemplo) (7). Em verdade, os exemplos clássicos de resultados tanto falso-positivos quanto falso-negativos são em geral retirados da sorologia da sífilis.
Seu resultado é semi-quantitativo, sendo dado como a maior diluição (em progressão geométrica) do soro em que a reação ocorre. Assim, um resultado pode ser não-reagente ou reagente - sucessivamente a 1:1, a 1:2, a 1:4, a 1:8, a 1:16, etc. Em princípio, quanto maior a diluição em que a reação ocorre, maior a probabilidade de que o resultado seja realmente positivo - como no exemplo que expusemos acima, sobre diabetes. Não há consenso sobre um título (isto é, diluição) que separe infectados de não-infectados, mas títulos iguais ou menores que 1:4 ou 1:8 são considerados baixos e, portanto, menos específicos. Ainda, em resultados seriados, obtidos em um mesmo laboratório, diferenças iguais ou menores que quatro vezes (isto é, uma ou duas diluições) não são consideradas significativas: por exemplo, dois resultados seguidos com títulos de 1:16 e 1:64 têm o mesmo valor clínico.
Os testes treponêmicos (em particular o FTA-Abs) utilizam treponemas obtidos de testículos de coelhos (uma vez que, como já dito, o T. pallidum não é cultivável em meios artificiais). Esta reação é qualitativa (estandardizada a uma diluição de 1:5) e, portanto, seu resultado é dado como positivo ou negativo. É uma reação de imunofluorescência indireta, razoavelmente trabalhosa e de custo elevado em comparação ao VDRL.
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6 J.C. Pechère e colaboradores: Reconnaît, Comprendre, Traiter les Infections. Maloine S.A., Paris, 1979. p. 209 .
7 E.C. Tramont: Treponema pallidum (Syphilis). Em Mandell, Douglas and Bennett’s Principles of Infections Diseases. Churchill Livingstone, Nova Iorque, 1995. p. 2117-2133.
Os testes não-treponêmicos em geral acompanham a atividade clinica, tornando-se reagentes nas fases iniciais da infecção, com títulos progressivamente mais baixos, ou mesmo inexistentes, à medida em que a infecção se cronifica e a sífilis se toma latente. O tratamento correto da infecção leva à redução dos títulos, ou ao seu desaparecimento. Os testes treponêmicos positivam-se mais tardiamente, e permanecem reagentes pelo resto da vida do paciente, mesmo quando este é tratado com sucesso. (8)
As normas para utilização de testes sorológicos no diagnóstico da sífilis são unânimes: um teste não-treponêmico (como o VDRL) deve sempre ser confirmado por um teste treponêmico (o FTA-Abs). Isto é recomendado por autoridades (9,10) e por Instituições, como a Organização Mundial da Saúde (11), a Associação Americana de Saúde Pública (12) e o Centro para Controle de Doenças dos EUA (13). Face à possibilidade de variações nos resultados entre diversos laboratórios, este último recomenda que testes seqüenciais em um paciente sejam feitos sempre em um mesmo laboratório.
Do Fato
As considerações a seguir baseiam-se em dados constantes da Ação movida pela paciente, contra o laboratório de propriedade do Dr. W. R. dos S., inclusive transcrição de declaração atribuída à médica da paciente, Dra. M. de Á. R. Verifica-se que "em exame de rotina" (sic) foram solicitados exames sorológicos para a sífilis na paciente e em seu esposo, sendo o dela reagente (1:8) e não-reagente o de seu marido. A Dra. R. interpretou o resultado como "significando que a paciente era portadora de sífilis" (sic), e solicitou um FTA.Abs, por ser um exame mais específico" (verbatim), o qual foi negativo.
Não nos cabe aqui perquirir que razões levaram a Dra. R. a solicitar "em exame de rotina" testes sorológicos para a sífilis na paciente e em seu esposo. Se tais razões não existiam, equivocou-se por primeiro a preclara colega, já que a necessidade dos exames se tornaria pouco evidente e sua interpretação - em caso de reatividade - mais difícil. Solicitados como testes de triagem, como rotina inespecífica, ainda assim pressupunham a existência de possibilidade da infecção sifilítica: se esta pudesse ser inteiramente afastada, previamente, não se justificaria a realização do exame.
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8 T.J. fitzgerald: Treponema. Em A. Balows, W. J. Hausler, Jr., K. L. Herrmann H. D. Isenberg & H. J. Shadpmy: Manual of Clinical Microbiology. American Society for Microbiology. Washington. 1991. p. 567-571.
9 E.C. Tramont, op. cit.
10 T. J. Fitzgerald, op. cit.
11 G. M. Antal: Present status of therapy and serodiagnosis of syphilis (some selected aspects). W. H. O./V.D.T./Res. 70:359,1979.
12 A. S. Benenson: Control of Communicable Diseases Manual. American Public Health Association. Washington, 1995. p. 449-454.
13 CDC Prevention Guidelines. Syphilis (pp. 688-703). Williams & Wilkins. Baltimore, 1997.
Se existiam aquelas razões e, mesmo que supostamente e por hipótese, contribuíssem para elevar a probabilidade pré-teste de infecção pelo T. pallidum, equivocou-se novamente a Dra. R. na interpretação dos resultados, como se depreende das considerações iniciais que fizemos. Independentemente da existência ou não de razões clínicas ou epidemiológicas para a solicitação de tais exames na paciente e em seu esposo, um resultado em título baixo em prova reaginíca não-treponêmica não pode ser interpretado com segurança como “significando que a paciente era portadora de sífilis", mas tão apenas como indicativo desta possibilidade, com maior ou menor grau de probabilidade (em função de dados clínicos, que foram ou deveriam ter sido recolhidos), necessitando obrigatoriamente de confirmação por teste treponêmico.
O que eventualmente foi feito, mas somente após aquele diagnóstico incorreto, impreciso, infundado, açodado e apressado ter sido comunicado à paciente e ao seu esposo, gerando assim todos os gravames que são apontados no corpo da ação pelo advogado representante da paciente - mas causados, salvo melhor juízo, não pelo resultado do teste do VDRL, e sim pela interpretação comprovadamente errônea que lhe foi dada pela médica solicitante.
É este o nosso parecer.
(Aprovado em Sessão Plenária de 09/12/98)
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