
PARECER CREMERJ N. 84/2000
INTERESSADO: Vários
RELATORES: Dr. Miguel Chalub
Cons. Paulo Cesar Geraldes
Câmara Técnica de Saúde Mental do CREMERJ
QUESTÕES RELATIVAS AO EXERCICIO PROFISSIONAL DA PSICANÁLISE
EMENTA: Afirma que a Psicanálise é uma atividade assistencial que não é privativa de uma determinada profissão. Sua prática deve se orientar pelas determinações das diversas instituições responsáveis pela formação psicanalítica dos postulantes que a elas se filiarem. Recomenda que a Psicanálise não deva ser regulamentada pelo poder público, deixando às diferentes sociedades ou associações o papel de estabelecer os critérios que considerem adequados para o exercício da atividade.
CONSULTA: Consulta solicitada por vários indagando sobre o posicionamento do CREMERJ a respeito do exercício profissional da Psicanálise.
PARECER: O exercício profissional da Psicanálise está a exigir definições objetivas e respostas a diversas questões que freqüentemente são formuladas e que até o momento não foram devidamente equacionadas. Podemos sistematizar estas questões nos seguintes tópicos:
1- Comporta a Psicanálise um exercício profissional e, caso comporte, é ela uma atividade assistencial?
2- O exercício da Psicanálise é privativo de alguma profissão já estabelecida ou regulamentada, ou é a Psicanálise uma nova profissão específica?
3- Quais as condições para a prática da Psicanálise, incluindo-se aí as regras da chamada formação psicanalítica?
4- A Psicanálise deve ser regulamentada pelo Poder Público ou deve ser deixada ao arbítrio de sociedades profissionais?
Sem entrar em temas históricos e doutrinários, podemos considerar que a Psicanálise comporta uma atividade assistencial, ou seja, a teoria e a técnica psicanalíticas podem ser usadas para a compreensão e a solução de problemas pessoais de natureza psíquica. Queremos como isto dizer que atualmente é consensual que uma pessoa que apresente sofrimento, questões, queixas ou problemas psíquicos possa procurar uma outra pessoa que se apresente como sendo capaz de ajudá-la a encontrar possíveis soluções para suas dificuldades anímicas. Se, para tanto, são utilizadas a teoria e a técnica psicanalíticas, estaremos diante da Psicanálise usada como atividade assistencial, por vezes chamada de Psicanálise Clínica. Cremos que, quanto a este aspecto, não há maiores divergências.
Por razões históricas ligadas à sua origem, mas também por motivação ideológica, a Psicanálise Clínica sempre esteve ligada à Medicina, a mais antiga e mais conhecida das profissões assistenciais. Destarte, passou a ser considerada uma das técnicas psicoterápicas a ser praticada por médicos. Com o surgimento da Psicologia como profissão assistencial - Psicologia Clínica -, também os psicólogos, com maior ou menor resistência por parte dos médicos, passaram também a exercê-la. Hoje em dia, ninguém questiona esta prática. A necessidade de uma formação específica para este exercício será tratada mais adiante. Pelo fato de a Psicanálise, além de ser uma atividade assistencial, ser também uma visão do homem e da cultura permeando todas as produções humanas, em particular as imaginárias e simbólicas, além das sócio-econômicas, passou a interessar aos cultores das chamadas ciências humanas ou do espírito. Teólogos, filósofos, etnólogos, sociólogos, pedagogos, literatos ( romancistas e poetas ) e outros, desde os primórdios, cultivaram a Psicanálise, mas apenas como pesquisa, investigação e "weltanschauung" ( visão do mundo ). Mais tarde, alguns desses, particularmente os que de certa forma também exerciam atividades assistenciais, passaram a praticar a Psicanálise Clínica. Assim, sacerdotes, assistentes sociais e professores tornaram-se psicanalistas.
Desde o início - e Freud, evidentemente, foi o primeiro a levantar a questão -, a condição indispensável para se tornar um psicanalista era a análise pessoal e uma formação teórica específica que, de início, não era muito clara em sua consistência. A formação universitária era considerada importante, mas não imprescindível. E esta formação poderia ser em Medicina, Psicologia ou qualquer outro ramo do conhecimento ainda que não fosse em ciências humanas. Tudo se passava, usando modelos atuais, como se a formação psicanalítica, em termos de preparação teórica, fosse uma "pós-graduação", sendo exigida graduação em qualquer área do saber, mesmo que fosse em ciências exatas ou da natureza. Daí a questão: o psicanalista é um profissional independente ou é uma atividade específica dentro de uma profissão?
Até hoje não há um consenso nítido se a Psicanálise Clínica deve ser uma profissão ou uma espécie de especialização de outra profissão. No primeiro caso, haveria, então, um "curso de graduação" em Psicanálise que seguiria o modelo tradicional de formação de um profissional da área assistencial: curso teórico e estágio prático. Caberia, então, incluir obrigatoriamente o requisito da análise pessoal. No segundo caso, seria um "curso de pós-graduação" para o qual seria exigida uma graduação em qualquer ramo do conhecimento ou apenas em determinada área do saber. Uma questão adicional a esta seria esclarecer se a profissão ou especialização deveria ser regulamentada pelo Poder Público - como no Brasil ocorre com algumas profissões - ou ser passível de uma espécie de "regulamentação ética" a cargo de entidades profissionais.
No Brasil, não há legislação a respeito do exercício da Psicanálise. Antes mesmo de se estabelecer regras legais torna-se necessário resolver uma questão prévia: é uma profissão ou uma especialidade de profissão já regulamentada? A ninguém ocorre "regulamentar" as profissões de psiquiatra, ginecologista ou ortopedista ou as de psicólogo clínico, psicólogo do trabalho ou psicólogo escolar pois é amplamente sabido que tais áreas de conhecimento e prática assistencial não são profissões, mas sim especialidades de uma atividade profissional, a Medicina ou a Psicologia, estas sim regulamentadas. Os Conselhos Federais de Medicina e de Psicologia já baixaram resoluções em que são listadas especialidades por eles reconhecidas, listas estas que são periodicamente revistas conforme a evolução técnico-científica. São três os caminhos que se delineiam de acordo com este pensamento:
1- Não regulamentar e deixar que cada um se intitule psicanalista conforme seus próprios critérios de formação. É o que ocorre com muitas profissões, para as quais não há curso superior ou mesmo técnico.
2- Regulamentar a profissão de psicanalista estabelecendo critérios e parâmetros para sua formação, bem como estatuindo as normas de seu exercício.
3- Os Conselhos Federais de Medicina e de Psicologia incluírem a Psicanálise nas respectivas listas de especialidades. Outros conselhos profissionais poderiam também adotar esta medida, como, por exemplo, o Conselho Federal de Assistentes Sociais. Duas questões devem ficar bem esclarecidas: o que se regulamenta, seja profissão ou especialidade, é o exercício assistencial, o atendimento pessoal em Psicanálise, a Psicanálise Clínica. No caso de regulamentação de especialidade por conselho profissional, seria inevitável o confronto jurídico, eis que os conselhos não elaboram leis ou decretos de obrigação geral.
Por fim, a atual situação no Brasil.
A Constituição Federal, no item XIII do artigo 5º, assegura liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. No item II do artigo 206, determina a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber. Por sua vez, a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ( Lei Darcy Ribeiro ) estabelece que o ensino é livre à iniciativa privada, desde que atendidas determinadas condições: cumprimento de normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de ensino, autorização de funcionamento e avaliação de qualidade pelo poder público e capacidade de autofinanciamento. Em seu artigo 44, a Lei reza que a educação superior abrangerá, entre outros cursos e programas, os cursos seqüenciais e os de extensão, ambos abertos a candidatos que atendam aos requisitos estabelecidos pelas instituições de ensino.
Como antes fora dito, não existe diploma legal, no Brasil, que discipline o ensino e o exercício da Psicanálise. O único ato normativo baixado até hoje é o Aviso Ministerial n. 257, de 06/06/1957, do Ministério da Saúde, que especificou algumas normas sobre a matéria. Assim: admite a existência de psicanalistas leigos ( não médicos ), mas exige uma formação psicanalítica reconhecida pela Associação Psicanalítica Internacional; as instituições psicanalíticas deveriam ser credenciadas pela Associação Psicanalítica Internacional; os clientes destes psicanalistas deveria ter indicação escrita de um médico que por eles ficaria responsável. Este documento está eivado de irregularidades e imprecisões, a saber:
1- Um ato ministerial não tem competência constitucional para dispor sobre exercício de profissão;
2- Subordina instituições brasileiras e uma formação profissional a ser exercida em território nacional a uma entidade estrangeira de direito privado e, portanto, sem nenhuma eficácia legal no país;
3- Não diz em que consiste esta formação psicanalítica leiga;
4- Subordina tais profissionais aos médicos mas não especifica como isto se dará e como os médicos poderão ser responsáveis por pacientes que não serão seus.
De todo o exposto, concluímos:
1- A Psicanálise é uma atividade assistencial;
2- A Psicanálise, por ser atividade assistencial, ao ser exercida por médico, passa a se constituir em ato médico, independentemente da modalidade psicanalítica adotada;
3- O exercício da Psicanálise não é privativo de uma determinada profissão e também não é uma nova profissão;
4- A prática da Psicanálise tem como requisitos aqueles determinados pela instituição que formulou aquela formação psicanalítica específica, isto é,
5- parâmetros definidos pela escola ou linha psicanalítica adotada pelo profissional.
6- A Psicanálise, portanto, não deve ser regulamentada pelo poder público, cabendo às diversas sociedades ou associações psicanalíticas estabelecer os
7- requisitos que considerarem adequados para o exercício da modalidade assistencial.
Assim sendo, infere-se que:
1- Qualquer entidade pode instituir um curso de Psicanálise desde que obedecidas a legislação sobre pessoas jurídicas e as normas do respectivo sistema de ensino;
2- Qualquer pessoa pode se intitular psicanalista e exercer esta atividade, respondendo pela falta de limites de sua prática;
3- Recomenda-se que o psicanalista esclareça a clientela sobre as circunstâncias relativas à sua prática, isto é, formação psicanalítica, escola psicanalítica a que se filia, mecanismos inerentes à sua prática psicanalítica, processo e condições de sua atividade psicanalítica, etc...
(Aprovado em Sessão Plenária de 24/03/2000)
Não existem anexos para esta legislação.
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