
PARECER CREMERJ N. 49/1996
INTERESSADO: Categoria Médica
RELATOR: Dr. Mauro Brandão Carneiro
Equipe de Processos Consulta do CREMERJ
PARECER EXARADO A PARTIR DOS AUTOS DO PROCESSO PRELIMINAR N. 3.743/96, REFERENTE À OBRIGATORIEDADE DE PREENCHIMENTO PELOS MÉDICOS DE FICHAS DE REGISTRO AMBULATORIAL, ADOTADAS PELA SECRETARIA DE SAÚDE DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO.
EMENTA: Esclarece que a Ficha de Leitura Ótica, cuja obrigatoriedade de preenchimento, por médicos, foi determinada pela SMS-RJ, trata-se, na realidade, da Ficha de Registro Ambulatorial (FRA), utilizada no Sistema de Gerenciamento de Ambulatório Básico, da Secretaria supracitada. Assinala que a documentação do ato médico não é Exercício burocrático e que é dever do médico elaborar prontuário para cada paciente. Ratifica ser o prontuário e a relação médico paciente, partes constitutivas do ato médico. Menciona os "Princípios Fundamentais" e o Capítulo "Direitos do Médico", do CEM. Destaca as manifestações contrárias ao preenchimento da ficha, notadamente, pelo prejuízo no atendimento e interferência na relação médico-paciente. Ressalta a solicitação do CREMERJ para atribuir a servidor administrativo o preenchimento das fichas e, a posterior resposta contrária da SMS-RJ. O CREMERJ aponta para degradação da assistência à população, conclui que o método empregado não invalida o sistema proposto, já que o acesso democrático à informação interessa à toda sociedade, mas recomenda à SMS-RJ a não adoção sistemática de preenchimento das FRA pelos profissionais médicos a ela subordinados.
O CREMERJ é instado a opinar acerca de supostas violações ao Código de Ética Médica em função da obrigatoriedade do preenchimento pelos médicos de fichas de leitura ótica, referentes aos atendimentos por eles realizados em algumas unidades assistências do Município do Rio de Janeiro.
Na realidade, trata-se da Ficha de Registro Ambulatorial (FRA), utilizada no Sistema de Gerenciamento de Ambulatório Básico (SIGAB), da Secretaria de Saúde do Município, que tem por objetivo a informatização de toda a rede assistencial, possibilitando avaliar o desempenho e a produção de cada unidade, além de produzir dados estatísticos capazes de traçar seus perfis de atendimento.
É louvável a iniciativa da Secretaria de Saúde. Levando-se em conta a difícil situação por que passa o setor saúde, em particular neste Município, a adoção de mecanismos gerenciais modernos demonstra uma preocupação efetiva na busca de soluções para a assistência médica. A produção de informações em saúde, devidamente democratizada, pode se constituir em importante instrumento de conscientização da população acerca dos problemas que enfrenta, auxiliando os Conselhos de Saúde na formulação de propostas, e aprimorando, desta forma, os mecanismos de controle social.
Também a classe médica tem interesse no sucesso da implementação de tal sistema. A oportunidade pode avaliar o desempenho de sua unidade, de seu serviço, enfim, de ter a noção exata do resultado de seu trabalho com a população usuária, é antiga aspiração profissional, sempre relegada pelas autoridades ditas competentes.
As visitas realizadas pela Comissão de Fiscalização do CREMERJ permitiriam o acesso a alguns relatórios produzidos com base nos dados coletados pelo sistema, sem dúvida recheados de informações úteis à população e aos médicos.
No mérito, deparamo-nos com a metodologia empregada para a sua viabilização. Como municiar tão importante instrumento com os dados necessários à sua construção? Compete ao médico fazê-lo? O preenchimento das fichas de leitura ótica prejudica a relação médico-paciente?
Não podemos confundir as coisas. Reconhecer a importância do sistema, lutar pela sua implantação e o uso adequado por quem tem direito, não confere ao médico a responsabilidade pela sua execução. Há evidente distorção quando se pretende obrigar ao médico o preenchimento das fichas, conforme veremos adiante.
Em primeiro lugar , cabe ressaltar que a documentação do ato médico não é um exercício burocrático. É dever do médico elaborar prontuário para cada paciente, registrando ali toda a sua história, o exame clínico, a evolução, os exames complementares, procedimentos e condutas adotadas. É um documento de vital importância para o médico e também para o paciente. É uma exigência ética.
O médico, portanto, está habituado a escrever. Faz parte da profissão que abraçou. Elaborar o prontuário não "atrapalha" o ato médico, pois é parte integrante dele. Um prontuário bem feito garante o bom raciocínio clínico, uma boa evolução e o adequado acompanhamento do paciente, inclusive quando se faz necessária a intervenção de outros médicos.
Infelizmente, o cotidiano da prática médica não tem corroborado tais conceitos. A sobrecarga de atendimento e as más condições de trabalho, reinantes na assistência pública e privada, associam-se à precária formação do jovem médico, trazendo conseqüências danosas ao exercício da Medicina. Não raro, processos de instaurados por deslizes éticos nos Conselhos de Medicina levam profissionais à condenação, quer pela displicência na elaboração ou mesmo pela inexistência do prontuário médico.
O prontuário é parte constitutiva do ato médico, como também é a relação médico-paciente. Muitas vezes, entretanto, a presença da Instituição interposta entre o profissional e o doente atua prejudicando ambos, ao invés de estimular a boa prática médica. A burocracia então extrapola o ato médico, que perde sua função finalística para transforma-se em mero instrumento da realização institucional.
Nosso Código de Ética prima pelo rigor com que consagra o ato médico. Em seus "Princípios Fundamentais" proclama, no Art. 2º:
"O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional."
Ainda nos "Princípios", trata adequadamente uma eventual intromissão institucional ao afirmar, no Art.16:
"Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou instituição pública ou privada poderá limitar a escolha por parte do médico dos meios a serem postos em prática para o estabelecimento do diagnóstico e para a execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente."
E no Capítulo dedicado a afirmar os Direitos do Médico, não deixa dúvidas em seu Art. 27:
"Dedicar ao paciente, quando trabalhar com relação de emprego, o tempo que sua experiência e capacidade profissional recomendarem para o desempenho de sua atividade, evitando que o acúmulo de encargos ou de consultas prejudique o paciente"
Com a mesma veemência com que defendemos os constitutivos do ato médico, devemos afastar quaisquer obstáculos à sua realização. Nossa legislação ética define a Medicina como uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade, e enfatiza que, para exercê-la a contendo. o médico deve resguardar ampla autonomia, e jamais renunciar à sua liberdade profissional. Estes pressupostos condicionam o êxito de nossa atuação.
As manifestações contrárias ao preenchimento pelos médicos das fichas de leitura ótica foram unânimes nos depoimentos colhidos durante as visitas às unidades do Município do Rio de Janeiro. Dos argumentos apresentados, todos pertinentes, dois deles, sem dúvida, destacaram-se: o prejuízo no atendimento e a interferência na relação médico-paciente.
Respondendo à solicitação do CREMERJ para atribuir a servidor administrativo o preenchimento das fichas, assim se pronunciou a Secretaria Municipal de Saúde, em ofício datado de 29 de julho p.p.:
"Consideramo-la (a proposição)não justificável, devido às carências existentes na área de servidores administrativos, mas principalmente pela facilidade do preenchimento pelo próprio médico, estimando-se o tempo gasto em apenas 40 segundos por FRA. Admitindo-se o atendimento de 16 pacientes por turno de 04 horas, o tempo total gasto seria em torno de 640 segundos, ou 10 minutos e 40 segundos, ou seja, 4% do tempo de duração do turno."
Ora, a "matemática" é realmente fantástica. Afinal, 4% de uma jornada de trabalho não é nada para quem fabrica parafusos ou executam rotina de escritório. Mas o que dizer de um ato profissional que envolve emoção, concentração, dedicação plena? Seria como se pedíssemos a um artista que interrompesse por "alguns segundos" seu momento de criação para "preencher umas fichas". Será que lembraria o número de seu CPF?
A "boleta" da Secretaria de Saúde é composta de dados extraídos do prontuário do paciente. Todos os médicos ouvidos descartaram a possibilidade de preenchimento fora do momento da consulta, pois não mais se lembrariam dos dados do paciente em questão, e teriam que rever prontuário por prontuário novamente. Se são 40 segundos realmente, eles acontecem em pleno "momento de criação", com flagrante ingerência no ato médico.
Dilema mesmo enfrentam os médicos que têm suas fichas literalmente devolvidas devido a "erros no preenchimento". Nas anuidades que visitamos com implantação mais recente (cerca de até um ano), dezenas de fichas são devolvidas ao médico para que faça as correções. Para tanto, ele deve buscar o prontuário no correspondente (no arquivo médico) e checar os dados outra vez. Dilema, ou humilhação?
Por outro lado, necessário se faz um enfoque mais detalhado sobre a Administração Pública, tendo em vista que muitas destas exigências acerca do exercício profissional giram em torno do interesse público, dever precípuo do administrador, e princípio fundamental também consagrado em nosso Código de Ética.
A Administração Pública pode e deve introduzir mudanças em suas ações, pois o objetivo maior a ser atingido é o benefício da comunidade que administra.
Para tanto, é fundamental garantir a satisfação do profissional no estrito exercício do que realmente é o seu mister, obtendo dessa forma uma assistência médica de qualidade, o verdadeiro e maior interesse da comunidade. Na arte de combinar estes dois fatores reside o êxito ou o fracasso do administrador dos serviços públicos.
Logo, ao adotar procedimentos que prejudiquem a qualidade do atendimento, na verdade não há interesse em que o mesmo seja realizado, posto que o princípio maior que reza a Administração Pública - o interesse público - precisa ser acolhido.
Tais atitudes não podem ser adotadas com o intuito de se obter vantagens dos empregados médicos. Prevalecem aqui os princípios da liberdade e da autonomia no exercício da profissão médica, expressões de um Código de Ética que orienta nossa prática em perfeita sintonia com os ditames do interesse público e da coletividade.
O argumento de que não houve resistência por parte dos profissionais quando da implantação do novo sistema é falacioso. O fato de não ter existido movimento ostensivo não significa que o método empregado tenha sido aceito pelos médicos. Não foi e não é. E esta revolta silenciosa é mais um fator a contribuir para a degradação da assistência à população, somando-se à sua irmã gêmea representada pelos baixos salários pagos pelo governo municipal.
Não obstante todo o exposto, resta a conclusão de que o método empregado não invalida o sistema proposto. A informatização das unidades de saúde, possibilitando o acesso democrático à informação, interessa à toda sociedade.
Compete, portanto, aos dirigentes, buscar soluções efetivas, criativas, lembrando que num projeto tão importante como esse não cabem argumentos como o da "carência" de servidores administrativos.
Isto posto, que seja recomendado a Secretaria Municipal de Saúde do Município do Rio de Janeiro a não adoção da sistemática de preenchimento das Fichas de Registro Ambulatorial pelos profissionais médicos a ela subordinados.
É o parecer.
(Aprovado em Sessão Plenária de 25/09/1996)
Não existem anexos para esta legislação.
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