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PROCESSO PARECER CONSULTA Nº 18/2021

PARECER CREMERJ Nº 31/2021

 

INTERESSADO: Dra.M.C.P. (Protocolo  nº 10321007/2019)

ASSUNTO: Interferência de mães e doulas em  procedimentos médicos no parto. 

RELATORA: Conselheira Ana Cristina Russo Marques Vicente

 

EMENTA: Indicação de procedimentos necessários e respaldados cientificamente.  Em  caso de recusa  dos procedimentos pelos genitores, que não configurem como risco iminente para o recém-nascido, o procedimento não deve ser realizado no momento. Em caso de urgência ou emergência, o médico tem o dever legal de agir, independente de consentimento. Quanto à interferência de doulas em atos  médicos,  o médico não pode renunciar à sua liberdade profissional. 

 

DA CONSULTA:

 

A consulente, médica, traz o seguinte questionamento:

“Gostaria de saber se uma puérpera tem a prerrogativa legal de recusar procedimentos técnicos preconizados pelo conhecimento científico vigente, como o uso de iodopovidine a 2,5% para prevenção de oftalmite neonatal, aplicação de vitamina K como profilaxia da doença hemorrágica do recém-nascido e a aplicação de vacinas, como a de hepatite B e BCG. Também gostaria de saber qual a conduta a adotar em relação à doula que interfere nas condutas médicas, como a definição de quando cortar o cordão umbilical, indicação e início de manobras de reanimação neonatal, entre outras. Puérperas atendidas em hospital público na cidade Macaé têm recusado o uso de iodopovidine à 2,5%, a aplicação de vitamina K e das vacinas de hepatite B e BCG, por orientação de doulas, que são categóricas e enfáticas em proibir tais procedimentos, como se tivessem autonomia para tal.

 

Sei que é vedado às doulas a realização de procedimentos médicos, mesmo que estejam legalmente aptas a fazê-los, sendo seu papel oferecer suporte emocional, não sendo sua função discutir procedimentos com a equipe ou questionar decisões. Porém, as puérperas já chegam ao hospital com esses conceitos de negação aos procedimentos citados, como se fossem procedimentos antinaturais e mesmo deletérios. As doulas agem como se estivessem protegendo os bebês das intervenções malfazejas dos profissionais de saúde do hospital.”.

 

 

DO PARECER:

 Quanto à prerrogativa legal da recusa da puépera aos procedimentos médicos preconizados pelo conhecimento científico vigente, sobre os questionamentos do caso em tela, destacamos:

 

A publicação da OMS em 2018, com as diretrizes para a experiência positiva no parto,  recomenda, nos  cuidados ao recém-nascido, retardar, quando possível,  o clampeamento do cordão umbilical para melhores resultados na saúde infantil. Além disso recomenda que recém-nascidos sem complicações devem ser mantidos em contato pele a pele com suas mães, que deve ser iniciado o mais breve possível e mantido durante a primeira hora após o nascimento, para facilitar o vínculo, prevenir hipotermia e promover a amamentação. Recomenda, ainda, que todos os recém-nascidos devem receber vitamina K por via intramuscular após o nascimento.

 

Para a realização da profilaxia da oftalmia neonatal, a recomedação  publicada pela SBP, através do documento Profilaxia da Oftalmia Neonatal por Transmissão Vertical que orienta o uso da povidona a 2,5% (colírio); ou a utilização da pomada de eritromicina a 0,5% ou ainda, como alternativa, tetraciclina a 1%. Recomenda, ainda, que em razão de sua maior toxicidade, a utilização de nitrato de prata a 1% deve ser reservada apenas em caso de indisponibilidade das outras substâncias.

Quanto à  aplicação das vacinas  no recém-nascido, vale citar que o Estatuto da criança e do adolescente (ECA) prevê, dentre outros, o direito à saúde, aí incluída a obrigatoriedade da vacinação, culminando com pena em caso de descumprimentro pelos genitores conforme dispõe abaixo:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.[...]

Art. 14. O Sistema Único de Saúde promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos.

§ 1º É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.  (BRASIL, 1990, grifo nosso)

 

Já em seu artigo 249 do ECA, estabelece que:

 

Art. 249. Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao  poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim como determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar: 

Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência. (BRASIL, 1990)

 

O Decreto nº 78.231/1976, ao regulamentar a Lei nº 6.259/1975, que versa sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças e prevê obrigatoriedade da vacinação nos menores de que se tenha a guarda ou responsabilidade, conforme disposto: Art 29. É dever de todo cidadão submeter-se e os menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade, à vacinação obrigatória. (BRASIL, 1976, grifo nosso)

 

Logo, a recusa à vacinação obrigatória de menores que estejam sob sua responsabilidade pode caractetrizar ato ilícito, por ofensa a normas específicas de tutela individual da saúde e da incolumidade pública.

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente também prevê:

 

Art 13. Os casos suspeitos ou confirmação de maus tratos contra a criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. (BRASIL, 1990)

 

Desta forma, à luz das normativas citadas, conclui-se ser obrigatório que os genitores submetam seus filhos à vacinação, excetuando-se apenas os casos de contraindicação médica.

 

O Código de Ética Médica, disposto pela Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, em seu capítulo Direitos Fundamentais, dispõe que:

 

V - Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade. [...]

XXI - No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo  com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos  diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que  adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas. (CFM, 2018, grifo nosso)

 

Sendo, portanto, os procedimentos em questão, todos recomendados para realização em momento oportuno, passamos a discussão para as esferas da relação médico paciente, da autonomia da gestante e da autonomia do médico.

 

No Código de ética médica consta que é vedado ao médico:

 

Art 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. 

Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente. [...]

 Art. 35. Exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico, complicar a terapêutica ou exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos. (CFM, 2018, grifo nosso)

 

A Resolução CFM nº 2.232, de 17 de julho de 2019, que estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente dispõe: “Art. 5º - A recusa terapêutica não deve ser aceita pelo médico quando caracterizar abuso de direito. [...]”. (CFM, 2019)

 

Nessa mesma perspectiva, o Código de Ética Médica, ainda no seu Capítulo I, que trata dos princípios fundamentais, versa sobre a autonomia do médico: 

 

Capítulo I – Princípios Fundamentais [...] 

VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou  quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. [...]

 

Capítulo 2 – Direitos dos Médicos: [...]

IIIndicar o procedimento adequado ao paciente, observadas  as  práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente.[...]

IX - Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.[...]

 

Capítulo IV – Direitos Humanos

É vedado ao médico:

 Art. 22 - Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. [...] 

 Art. 36 - Abandonar paciente sob seus cuidados.

 § 1°- Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho  profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento,  desde que comunique previamente ao paciente ou a seu   representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados  e  fornecendo todas as informações necessárias ao médico que o suceder. (CFM, 2018)

 

Quanto à interferência de doulas em condutas médicas é importante observar que restrições a procedimentos médicos cientificamente reconhecidos, são muitas vezes elaboradas por pessoas com conhecimento limitado para avaliar a diversidade de situações que se impõe na saúde e cujo desfecho será de responsabilidade do médico.

 

No capítulo I do Código de Ética Médica consta:

 

Art VIII - O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho. [...]

Art XIX - O médico se responsabilizará, em caráter pessoal e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e executados com diligência, competência e prudência. (CFM, 2018)

 

CONCLUSÃO:

 

Os programas e políticas em saúde da mulher atualmente são focados na implementação de modelo de assistência baseada nas evidências científicas, no protagonismo, nos direitos e na autonomia da mulher, visando qualificar a atenção, garantir decisões informadas no ciclo gravídico puerperal e reduzir a mortalidade materna e infantil.

 

Por outro lado, do ponto de vista da responsabilidade pelo desfecho, é levantada a questão da autonomia do médico, que deve ser exercida sempre observando e respeitando a autonomia da paciente.

 

Portanto, o elemento mais importante nessa discussão é a relação médico-paciente, para busca conjunta pela observância das preferências da gestante, após informada pelo médico, sem, contudo, que isso ofereça risco à mesma e/ou ao bebê.

 

Pelo exposto, no caso em tela, o médico deve indicar os procedimentos para garantir a saúde do bebê, após esclarecimentos com base nas evidências científicas. Sendo o contato pele a pele na primeira hora de vida de suma importância para a saúde do bebê, os procedimentos que não sejam urgentes podem ser adiados, para realização em momento oportuno, o mais breve possível.

 

A gestante ou puérpera, no exercício de sua autonomia, em cenário de normalidade, pode solicitar escolhas em respeito à sua vontade. Observando que, no caso de procedimentos realizados com interesse na saúde e integridade da criança, este prevalece sobre interesses particulares ou decorrentes de posições ideológicas de seus genitores. Portanto, em caso de risco iminente para o recém-nascido, como o caso de reanimação citado pela consulente, o médico tem dever de agir.

 

A legislação é clara ao afirmar que o consentimento não se sobrepõe a necessidade de algum procedimento médico. Por outro lado, em caso realização de procedimentos desnecessários ou em momento inoportuno, acarretando danos aos pacientes, o médico poderá ser responsabilizado em esfera ética ou judicial.

 

O médico, também no exercício da sua autonomia, pode se recusar a prosseguir com o atendimento, caso discorde das escolhas da gestante ou puérpera, desde que cientifique inequivocamente a paciente e não se configure urgência ou emergência, quando o médico tem o dever legal de agir.

 

Exceto nos casos de contraindicação médica, nos moldes da lei, os responsáveis não podem recusar a vacinação de crianças, nem por alegação de liberdade filosófica ou religiosa, uma vez que a tutela da saúde da criança tem prioridade absoluta e prevalece sobre interesses particulares ou decorrentes de posições dos responsáveis.

 

Portanto, em caso de recusa de vacinação e demais procedimentos que possam causar danos ao recém-nascido, o médico deve registrar em prontuário e seguir o protocolo institucional para comunicar ao Conselho Tutelar.

 

Pelo exposto, em conclusão, o médico tem o dever de indicar os procedimentos necessários e respaldados cientificamente. Em se tratando de recusa de procedimentos pelos genitores, que não configurem como risco iminente para o recém-nascido, o médico não deve realizar o procedimento no momento, devendo registrar o fato em prontuário e seguir o protocolo institucional para comunicar imediatamente ao Conselho Tutelar, para eventuais medidas cabíveis. Em caso de urgência ou emergência, o médico tem o dever legal de agir, independente de consentimento.

 

Quanto à interferência de doulas em atos médicos, o médico não pode, em nenhuma circunstância e sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.

Este é o parecer, S.M.J

Rio de Janeiro, 30 de novembro de 2021.

Ana Cristina Russo Marques Vicente

CONSELHEIRA RELATORA

 

Parecer aprovado na 363ª Sessão Plenária do Corpo de Conselheiros do CREMERJ, realizada em 30 de novembro de 2021.

REFERÊNCIAS:

 

Brasil. Decreto nº 78.231, de 12 de agosto de 1976. Regulamenta a Lei nº 6.259, de 30 de outubro de 1975, que dispõe sobre a organização das ações de vigilância epidemiológica, sobre o programa nacional de imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 13 ago. 1976. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/D78231.htm#:~:text=DECRETO%20No%2078.231%2C%20DE,doen%C3%A7as%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.  Acesso em: 27 nov. 2021.

 

BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, p. 13.563, 16 jul. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm Acesso em: 27 nov. 2021.

 

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.217, de 27 de set. de 2018. Dispõe sobre o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União: Seção  I, Brasília,  DF, p. 179. 01 de Nov. 2018. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2217 Acesso em: 09 mar. 2021.

 

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.232, de 17 de julho de 2019. Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente. Diário Oficial da União: Seção  I, Brasília,  DF, p. 113, 16 set, 2019. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2016/2144  Acesso em: 09 mar. 2021.

 

ORGANIZAÇÃO MUNIDIAL DA SAÚDE (OMS). WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience. [s.l.]: OMS, 2018. Disponível em: https://www.who.int/reproductivehealth/publications/intrapartum-care-guidelines/en/ Acesso em: 27 nov. 2021.

 

Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).  Profilaxia da Oftalmia Neonatal por Transmissão Vertical. Rio de Janeiro: SBP, 2020. Disponível em: https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/profilaxia-da-oftalmia-neonatal-por-transmissao-vertical/ Acesso em: 27 nov. 2021.


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