
PARECER CREMERJ N. 35/1995
INTERESSADO: Dra. V. de S. C.
RELATOR: Consº Mauro Brandão Carneiro
Equipe de Processos Consulta do CREMERJ
OBRIGATORIEDADE DE MÉDICOS ESPECIALISTAS ATENDEREM FORA DO ÂMBITO DE SUAS ESPECIALIDADES.
EMENTA: Cita renomados professores de Medicina e expõe o pensamento dos mesmos sobre a especialidade médica, e discorre acerca do surgimento desta e do médico especialista. Alerta que este profissional qualificado, amparado pelo Código de Ética Médica, Art. 7º e 8º, poderá recusar-se a prestar atendimento em especialidade para a qual não se considera apto a fazê-lo, sob pena de trazer prejuízos, ao invés de benefícios, ao paciente sob seus cuidados; que muito além das normas e regulamentos institucionais, o compromisso ético do médico o obriga a assumir a assistência a qualquer paciente em caso de extrema urgência, risco de vida ou inexistência de outros colegas mais capacitados para fazê-lo; que dependendo do tipo de patologia apresentada pelo doente em questão, e da competência técnica exigida do profissional que irá acompanhá-lo na remoção, o especialista poderá se considerar inapto a fazê-la. Conclui que o médico, quando contratado para exercer determinada atividade especializada, e tal atividade é explicitada no contrato, não tem qualquer obrigação com a instituição que o contratou fora dos termos deste contrato e que o compromisso do médico com a Ética não pode ser usado para fazer valer vantagens dos empregadores nos contratos de trabalho, sejam eles públicos ou privados.
CONSULTA: Parecer motivado por consulta sobre a obrigatoriedade de médicos especialistas atenderem fora do âmbito de suas especialidades, notadamente: se pode um Clínico considerar-se inapto e negar-se a atender um diabético, especialidade de Endocrinologista; se pode um Obstetra considerar-se inapto e negar-se a atender uma paciente com problemas ginecológicos; se pode um Médico de Atendimento Básico considerar-se inapto e negar-se a acompanhar um paciente em ambulância, por não ter formação de Socorrista.
PARECER: Preliminarmente, algumas considerações sobre o conceito de especialidade, seu desenvolvimento e importância para a coletividade, e também sobre suas limitações. Da forma como está colocada a questão, o especialista parece um entrave, um obstáculo ao bom atendimento à população.
A especialização em Medicina é resultado do desenvolvimento científico e tecnológico em larga escala, processo que vem sendo observado há mais de um século. O Dr. Marcello Marcondes Machado, Professor Titular do Departamento de Clínica da Faculdade de Medicina da USP, assim caracteriza o surgimento da especialidade:
"Um determinado saber, inserido num conjunto mais amplo de conhecimentos coerentes entre si, torna-se especialidade quando, ao se expandir, passa a ser igual ou maior do que o todo de que antes era apenas parte."
Os excessos observados no desenvolvimento das diferentes especialidades ficam por conta, fundamentalmente, da perda da noção do indivíduo como um todo. Nas palavras do Professor Clementino Fraga Filho,
"O entusiasmo pelas novas aquisições, o deslumbramento com os resultados de sua aplicação prática médico-cirúrgica, conduziram a excessos e, paradoxalmente, a deficiências. Deficiências na formação do médico, carente de preparo geral e voltado para um tecnicismo que, muitas vezes, o afasta da visão do doente como ser humano, tratando-o como se fosse apenas um indivíduo que emite sinais captados por um instrumento".
Não há qualquer dúvida entre os diferentes autores sobre a importância da especialização. Ressalvadas as críticas às distorções hoje existentes na formação do especialista, ele é produto histórico do desenvolvimento do conhecimento das ciências biológicas e da tecnologia aplicada. Dario Birolini, Professor Titular do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP, ressalta o valor deste profissional para a sociedade, mostrando-o como alguém "capaz de assumir a responsabilidade de atender de forma integral casos de alta complexidade, de projetar-se academicamente através da investigação clínica e experimental e de contribuir para o progresso da Medicina. De fato, é óbvio que o nascimento das especialidades médicas foi a resposta racional e sensata ao desafio de garantir uma assistência de boa qualidade, de permitir uma atualização e reciclagem dos profissionais por ela responsáveis e, ao mesmo tempo, de resguardar o próprio médico, frente a um usuário cada vez mais crítico".
No mérito, este profissional qualificado poderá recusar-se a prestar atendimento em especialidades para as quais não se considere apto a fazê-lo. Este direito está consagrado em nosso Código de Ética e em ampla jurisprudência difundida por todo o território nacional.
“Art. 7º - O médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje, salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente".
“Art. 8º - O médico não pode, em qualquer circunstância ou sob qualquer pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, devendo evitar que quaisquer restrições ou imposições possam prejudicar a eficácia e correção de seu trabalho".
Estes dois artigos, que afirmam o exercício da Medicina com liberdade e autonomia, integram os Princípios Fundamentais do Código de Ética Médica, consagrando um de seus postulados máximos que reza ser a saúde do ser humano o alvo de toda a atenção do médico, "em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional".
Para tanto, é perfeitamente lícito que o profissional se recuse a prestar atendimento nas áreas do conhecimento médico para as quais não se considere habilitado, sob pena de trazer prejuízos, ao invés de benefícios, ao paciente sob seus cuidados.
O próprio Código se encarrega de impor limites a esta autonomia, ressalvando os casos "de urgência, ausência de outro médico, ou quando a negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente". Muito além das normas e regulamentos institucionais, o compromisso ético do médico o obriga a assumir, e ele certamente o fará, a assistência a qualquer paciente em casos de extrema urgência, risco de vida ou inexistência de outros colegas mais capacitados para fazê-lo, em determinadas circunstâncias.
Não encontra fundamento lógico, portanto, o temor de nossa consulente diante de possíveis situações catastróficas.
Quanto aos quesitos propostos, ficamos surpresos com sua tendenciosidade, ou talvez desinformação. Senão, vejamos:
"Pode um Clínico considerar-se inapto e negar-se a atender um diabético, especialidade de Endocrinologista"?
"Pode um Obstetra considerar-se inapto e negar-se a atender uma paciente com problemas ginecológicos"?
Situações inusitadas. Pelas próprias características da formação do internista, ou do obstetra, enquanto especialistas em suas áreas de atuação, dificilmente tais recusas ocorreriam. Considerarem-se "inaptos" diante de tais patologias, respectivamente, estariam depondo contra a própria especialidade. Preferimos acreditar na radicalidade dos exemplos da nossa consulente, tão somente na busca de respostas sobre a recusa do especialista em atender fora da área de seu mister. E acreditamos já ter respondido anteriormente.
"Pode um Médico de Atendimento Básico considerar-se inapto e negar-se a acompanhar um paciente em ambulância por não ter formação de Socorrista"?
Mesmo desconhecendo a "especialidade" denominada "Atendimento Básico" por nossa consulente, a resposta a este quesito é sim. Dependendo do tipo de patologia apresentada pelo doente em questão, e da competência técnica exigida do profissional que irá acompanhá-lo na remoção, o especialista poderá se considerar inapto a fazê-la. Além dos argumentos já apresentados sobre o direito de recusa do médico, bem como de suas exceções, citamos parecer similar aprovado pelo CREMERJ em 1990, nas palavras do relator à época, Dr. Gilson Maurity Santos:
"O médico especialista, contratado para execução de assistência na especialidade, conforme mostra o contrato, também não é obrigado a participar de escalas de saídas em ambulâncias, exceto se se tratar de atendimento a enfermos com lesões que caibam na competência de sua especialidade; sempre com a ressalva ética dos casos de risco de vida ou ausência de outros profissionais disponíveis".
Ainda no mérito, a consulta formulada pela solicitante manifesta, em todo o seu conteúdo, uma zelosa e correta preocupação com o atendimento à população. Quando afirma que a solução encontrada para não deixar a população sem atendimento aos casos de dengue foi "distribuir este atendimento por toda a classe médica da Unidade, uma vez que no quadro médico do município não temos especialistas em infectologia", somos de opinião que o município do Rio de Janeiro precisa corrigir tal lacuna. Na área de doenças infecciosas, em particular nas situações de epidemias, o especialista se faz necessário para um correto diagnóstico diferencial e instituição da terapêutica adequada.
Por outro lado, necessário se faz um enfoque mais detalhado sobre a Administração Pública, tendo em vista que muitas destas exigências acerca do exercício profissional giram em torno do interesse público, dever precípuo do administrador, e princípio fundamental também consagrado em nosso Código de Ética.
A este respeito, transcrevemos trecho de brilhante Parecer exarado pela Dra. Adriana Joubert, Assessoria Jurídica do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, a partir de consulta solicitada por médica "sobre exigência de sua chefia no sentido de que preste atendimento às situações de emergência que envolve menores, sob ameaça de ficar caracterizada omissão de socorro".
"Realmente, a priori, a Administração Pública pode determinar remanejamentos ou realizar modificações sob a égide de um princípio que é a finalidade de sua atuação: o interesse público".
Portanto, o objetivo que deve ser perseguido pelo agente do Poder Público é o benefício da comunidade administrada.
Assim, se a busca do bem comum é a base da trajetória de uma boa administração, cabe estabelecer um paralelo entre a intenção de um profissional no aperfeiçoamento de uma especialização e a qualidade do trabalho que por ele será desencadeada. Vale dizer, o resultado da combinação destes fatores será um atendimento médico aprimorado que implicará no zelo pela saúde humana, que é a única razão da Medicina.
Logo, se ocorrer uma transferência de um profissional de uma área, na qual sua função era exercida com apreço e desenvoltura durante longo período de tempo, para outra, o que demandará um prazo para adaptação e implicará em busca de experiência novamente, é cristalino que muitos prejuízos ocorrerão.
Desta forma, a coletividade e a população carente de atendimento em ambas as áreas sofrerão irremediáveis conseqüências.
Quanto ao médico, se alguma negligência for praticada em função de sua falta de intimidade com a nova atuação é evidente que ele terá sua responsabilidade avaliada.
Entretanto, a responsabilidade de uma Chefia que pressiona um médico sob sua orientação a exercer função em especialidade para a qual não se sente apto também será questionada, sobretudo tendo em vista a negativa do profissional com base no reconhecimento de sua inaptidão.
É neste enfoque que emerge, novamente, a discussão do interesse público, na medida em que a prestação de assistência médica com qualidade é de relevante interesse da coletividade.
Logo, se em função de um remanejamento o nível de atendimento for prejudicado, entendemos que inexiste interesse em que o mesmo seja realizado, uma vez que o princípio maior que reza a Administração Pública precisa ser acolhido".
Este parecer foi aprovado em Sessão Plenária daquele Conselho em maio de 1990.
Finalizando, entendemos que o médico, quando contratado para exercer determinada atividade especializada, e tal atividade é explicitada no contrato, não tem qualquer obrigação com a instituição que o contratou fora dos termos deste contrato.
No entanto, suas obrigações com o exercício da Medicina e com a Ética transcendem os limites de qualquer contrato, e ele sabe que procederá com dignidade diante das situações de extrema urgência, risco de vida para o paciente ou na ausência de outro médico para prestar o atendimento.
Tais compromissos não podem ser usados para fazer valer vantagens dos empregadores nos contratos de trabalho, sejam eles públicos ou privados. Prevalecem aqui os princípios da liberdade e da autonomia no exercício da profissão médica, expressões de um Código de Ética que orienta nossa prática em perfeita sintonia com os ditames do interesse público e da coletividade.
É o parecer.
(Aprovado em Sessão Plenária de 21/06/95)
Não existem anexos para esta legislação.
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