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Na Mídia - Paralisação do teste do pezinho deixou danos irreversíveis

Extra / Cidade

14/10/2018


Retenção de 106 mil amostras deixou cerca de 400 crianças sem diagnóstico precoce

Numa segunda-feira, 25 de julho de 2016, Maria Alyce nasceu chamando a atenção de todo o hospital. Gritava sem parar, um choro diferente, uma irritação constante. Médicos e enfermeiros faziam de tudo para acalmar a menina. Nada adiantava. Com quatro dias de vida, foi levada pela mãe à Clínica da Família Dona Zica, na Mangueira, para fazer o teste do pezinho. Mas o resultado só saiu quando a pequena estava com 1 ano e 4 meses e com sequelas mentais irreversíveis. Um mês depois, a família enfim recebia um diagnóstico: fenilcetonúria, umas das seis doenças genéticas rastreadas pelo teste do pezinho.

A menina, hoje com 2 anos, é uma das cerca de 400 crianças portadoras de doenças genéticas graves rastreadas pelo teste do pezinho que, segundo estimativas, deixaram de ser diagnosticadas precocemente em função da paralisação do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) no estado do Rio, de junho de 2016 a janeiro de 2017. São casos que, na ausência do tratamento precoce, iniciado antes do surgimento dos sintomas, evoluem para retardo mental, desnutrição grave e até a morte. Nesse período, 106 mil exames não foram processados. A Secretaria estadual de Saúde (SES) mudou a instituição responsável pelo programa em fevereiro do ano passado, mas um relatório de auditoria feito pelo Ministério da Saúde aponta que os problemas continuam.

Segundo o documento, entre 2015 e 2017, não foram diagnosticados casos de fibrose cística no estado do Rio, quando a incidência da doença aponta que o esperado seriam 22 pacientes por ano chegando aos centros especializados. O relatório afirma que, “no ano de 2017, houve um número significativamente menor de casos positivos para as doenças do escopo do PNTN”.

— Estima-se que 400 crianças estejam hoje com sequelas irreversíveis, algumas morreram sem diagnóstico, já que são doenças complexas e pouco comuns. Isso é criminoso, porque o tratamento precoce pode dar a essas crianças uma vida normal. E os pacientes continuam não chegando aos serviços especializados. Alguma coisa errada ainda está acontecendo — disse Cristiano Machado Silveira, presidente da Associação de Fibrose Cística do Rio de Janeiro.

 

‘Só após o diagnóstico, as convulsões pararam’

ALINE FERREIRA 19 anos, mãe de Maria alyce, de 2 anos

 

A irritação de Alyce não passava, e os médicos desconfiavam de que havia alguma coisa errada. Fui várias vezes à clínica da família perguntar sobre o resultado do teste do pezinho. Minha filha tinha convulsões e chegou a tomar remédios fortes para controlar, que só pioravam o quadro. Com 1 ano, ainda não sentava nem fixava o olhar. Somente aos 2 começou a andar. Após o diagnóstico, tiramos todo alimento com proteína da alimentação dela e as convulsões pararam. Se o resultado do teste do pezinho tivesse saído no tempo certo, nada disso teria acontecido.

O QUE APONTA O EXAME

O teste do pezinho realizado no SUS rastreia seis doenças: fenilcetonúria, fibrose cística, doença falciforme, hipotireoidismo congênito, deficiência de biotinidAse e hiperplasia adrenal congênita. Nenhuma delas tem cura, mas a intervenção médica precoce, antes do surgimento dos sintomas, pode mudar completamente o rumo dessas doenças, melhorando a qualidade de vida dos pacientes e evitando sequelas

Testagem tardia perde o propósito

Em março do ano passado, o PNTN foi transferido do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (Iede) para a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae-Rio), que passou a ser responsável por 100% dos testes do pezinho da rede pública do estado. O contrato, com validade de um ano, prevê o pagamento de R$ 7 milhões pelas análises. Em reunião no Cremerj, em maio, representantes da SES garantiram que os exames atrasados foram realizados.

Os problemas na realização do teste do pezinho começaram no final de 2015 e culminaram em junho de 2016, quando o Iede deixou de receber da SES os repasses federais. Sem reagentes para as testagens, o instituto acumulou 106 mil amostras não analisadas até fevereiro de 2017.

A testagem tardia das amostras, no entanto, perde o propósito, que é diagnosticar a doença antes do surgimento dos sintomas e da instalação de sequelas irreversíveis. Mais do que isso, pode atrapalhar diagnósticos, já que as testagens para algumas das seis doenças, como é o caso da deficiência de biotinidase, perdem a confiabilidade.

— O teste do pezinho só faz sentido nos primeiros meses de vida do bebê. Por isso, deve ser coletado entre o terceiro e o quinto dia de vida, de forma que, se der alterado, a segunda coleta para confirmação seja feita antes de a criança completar 1 mês. No caso da fibrose cística, por exemplo, se a coleta é feita após 1 mês de vida, o resultado não será confiável, porque o metabolismo da criança vai mudando — explicou Ricardo Meirelles, diretor do Iede, referência no estado para deficiência de biotinidase.

‘Falhas grosseiras’ na transição para a Apae

A paralisação do PNTN e sua transição para a Apae foi acompanhada pelo Cremerj, que fez reuniões para minimizar os problemas.

— Houve falha grosseira na transição da triagem do Iede para a Apae. Não há dúvida de que houve prejuízo no processamento tardio dessas amostras acumuladas — disse Gil Simões, ex-conselheiro do Cremerj.

As falhas apontadas por Simões são descritas no relatório da auditoria do Ministério da Saúde na Apae. Na primeira visita, “verificou-se que os resultados estão demorando uma média de 30 dias para serem liberados no sistema”. Na segunda vistoria, em março, o relatório informa que os resultados estão sendo lançados de cinco a sete dias a partir da chegada das amostras ao laboratório. O documento lembra, porém, “o tempo preconizado da amostra dentro do laboratório é de no máximo cinco dias”. O documento afirma também que persistem os problemas na busca ativa de casos que necessitam retestagem.

Diretor médico da ApaeRio, Fernando Rocha garante que os problemas foram sanados e que os 1.500 casos pendentes para retestagem são de amostras acumuladas no Iede e sem endereço da mãe.

A SES não respondeu por que o Iede ficou sem reagentes e paralisou o PNTN. Afirmou que “as crianças de 2016 que apresentaram alteração nos exames foram reavaliadas por profissionais de saúde”. A secretaria disse também que os testes do pezinho estão em dia no estado, com entrega de resultados online em cinco dias úteis no site Conexão Saúde RJ.