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Na Mídia - Para consertar um coração

O Globo / Sociedade

02/06/2018


Faltam hospitais e cirurgiões preparados para salvar crianças com malformações cardíacas 

Tratar uma criança com malformação no coração custa muito. Exige mais profissionais e hospitais especializados do que o Brasil dispõe: em seis estados, não se realiza a cirurgia necessária para a correção do problema. O desequilíbrio entre demanda e oferta aumenta o já farto peso sobre os ombros de profissionais que trabalham diariamente no limiar entre a vida e a morte de recém-nascidos. No Rio de Janeiro, dois dos cinco hospitais habilitados não estão operando por falta de recursos. O GLOBO acompanhou 24 horas de plantão em um dos hospitais que operam os corações de crianças de todo o estado.

O relógio batia por volta de uma e meia da manhã na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para crianças cardíacas da Perinatal da Barra da Tijuca, na Zona Oeste. A técnica em enfermagem Tatiana Moreira balançava de um lado para o outro com uma criança no colo e as pálpebras rebaixadas pelo cansaço.

— Algumas pessoas veem a UTI como um lugar de morte, mas eu a vejo como um lugar de vida. Nós salvamos vidas aqui — diz Tatiana, lutando para não ceder às lágrimas com mais uma partida: a menina teria alta na manhã seguinte.

O resto da madrugada não é de tranquilidade, no entanto. Há 12 pequenos quartos envidraçados na UTI, e no centro de cada um deles se encontra um pequeno berço e uma profusão de equipamentos. Naquela noite, dez leitos estavam ocupados, dois deles com bebês em estado grave. Apitos descontrolados irrompem de um dos quartos por volta das quatro da manhã. O pequeno corpo, monitorado por um emaranhado de fios e tubos, mal se move. A menina, de um mês de vida, está quase tão branca quanto o lençol que a envolve. Em uma das cinco telas ao lado do berço de acrílico é possível ler que a taxa de oxigenação de seu sangue foi abaixo dos parâmetros estabelecidos. Não seria a única vez que isso aconteceria nas 24 horas do plantão.

Existem aproximadamente 120 variações de malformações cardíacas, e todas elas têm um único e pernicioso efeito colateral: comprometem a oxigenação do sangue do recém-nascido. Sem receber oxigênio suficiente, outros órgãos entram em colapso. Dependendo do tipo de malformação que o pequeno coração apresente, a criança sobrevive por anos ou apenas alguns dias.

 

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

O problema não é sem solução, nem imprevisível. A malformação pode ser diagnosticada com o bebê ainda na barriga da mãe. Em 20% dos casos, o próprio corpo desenvolve uma solução, e para os outros 80% a solução é cirúrgica.

A grande questão, no Brasil, é o acesso ao diagnóstico e ao tratamento. Estima-se que a cada ano 29 mil crianças brasileiras nasçam com malformação cardíaca, mas os registros oficiais de atendimento não chegam a um terço desse número, que pode ser ainda maior, já que muitas mortes são registradas de forma errada pela falta de diagnóstico.

De volta ao cômodo onde os aparelhos apitavam, percebe-se que ali houve um esforço familiar em criar a atmosfera de um quarto de bebê: bichos de pelúcia descansam sobre a poltrona e, na beira da janela, é possível ver as iniciais da menina em madeira pintada de rosa. Vinda de um hospital público, além de problemas no coração, a menina tem complicações nos rins e uma infecção que deve ser tratada antes de entrar na sala de cirurgia. Seus pais conseguiram cortar a fila de atendimento por meio de uma liminar da Justiça.

No último ano, com a redução na oferta pública de cirurgias cardíacas pediátricas no estado, aumentou a procura no Plantão Judiciário Noturno por atendimentos de crianças cardiopatas. Esse aumento e uma denúncia do Conselho Regional de Medicina do Rio (Cremerj) fizeram as defensorias públicas da União e do estado analisarem a situação. As duas instituições abriram uma ação civil pública em março.

“As unidades de saúde que prestam o serviço de cirurgia cardiovascular pediátrica no SUS no território do estado do Rio foram abandonadas e desaparelhadas pelos entes federativos”, afirmam no texto.

 

QUINZE ANOS DE FORMAÇÃO

Seis das dez crianças internadas durante aquele plantão eram do Sistema Estadual de Saúde. A Perinatal tem um contrato com o governo do Rio para fazer esse tipo de atendimento, mas o pagamento está atrasado. As defensorias acusam a clínica de diminuir o fluxo de atendimento em meses que o governo paga menos do que o combinado. De fato, há uma redução entre setembro e novembro de 2017, quando foram feitas 13 operações por mês. Mas neste ano o índice voltou a subir, e a média atual é de 20 cirurgias por mês.

O Ministério da Saúde reconhece que essa situação não se restringe ao Rio, tanto que anunciou um aumento de 75% no orçamento dos atendimentos a cardiopatias pediátricas em 2017. O objetivo é aumentar de 9,2 mil cirurgias ao ano para cerca de 12 mil em todo o país, o que seria suficiente para atender aos casos urgentes. No entanto, há uma fila de crianças esperando que não é considerada. A Secretaria de Estado de Saúde afirma estar “trabalhando para zerar a fila” de espera por esse tipo de cirurgia.

O relógio bate seis horas da manhã, o Sol nasce, e um novo grupo de profissionais chega para render o plantão. Alguns ficam visivelmente abalados ao descobrir que, durante os dois dias de descanso, um menino de poucos dias de vida morreu. A primeira semana é o momento mais arriscado para um bebê: 41% das mortes registradas até os 5 anos de idade, no Brasil, acontecem antes de completarem sete dias. Nesse período, a prematuridade e as malformações são os dois maiores algozes, sendo as cardíacas as mais agressivas.

Às dez horas começa a reunião sobre o desenvolvimento dos pacientes, liderada pela chefe da equipe médica, Sandra Pereira. Ela conta que leva aproximadamente 15 anos para formar um médico especializado em cirurgia cardíaca pediátrica e que, no Rio, só existem três cirurgiões especializados. Segundo levantamento feito pelas defensorias, os três hospitais operantes no Rio precisam de cerca de 300 profissionais especializados, entre eles quatro cirurgiões cardíacos pediátricos.

Depois de saber como cada paciente se desenvolveu durante a noite, Sandra senta-se com o cirurgião chefe para estabelecer a metodologia adotada em cada uma das cirurgias e quais equipamentos serão necessários. Ela explica que cada operação é única, e cada coração exige uma estratégia específica. Alguns métodos só são executados pelos profissionais que se encontram ali.

— A gente perde noites em claro pensando em como vai resolver, porque existem casos que são muito complexos, não é uma ciência exata.

Na sala de cirurgia, durante a operação que dura toda a tarde, tubos puxam o sangue do pequeno corpo de um bebê para uma máquina que o bombeia de volta ao organismo, fazendo o trabalho do coração enquanto o órgão é operado ainda dentro do corpo. Ao fim do dia, a menina de um ano e meio já estava de volta à UTI, e as enfermeiras abaixavam uma das laterais do berço para que ela pudesse sentir o calor do corpo de sua mãe, debruçada por sobre o leito enquanto cantava uma canção de ninar.

A dois cômodos dali, outra mãe aguarda de pé ao lado do berço da filha, que deverá passar por mais uma operação. Com as mãos juntas, postadas como em oração, a mulher é encontrada nessa posição às seis da manhã, ao meio-dia e às dez horas da noite. Tratar uma criança com malformação no coração custa muito. O maior dos investimentos é emocional.

“Algumas pessoas veem a UTI como um lugar de morte, mas eu vejo como um lugar de vida. Nós salvamos vidas aqui” Tatiana Moreira Técnica em enfermagem “A gente perde noites em claro pensando em como vai resolver casos muito complexos, não é uma ciência exata” Sandra Pereira Chefe da equipe médica.