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Na Mídia - Falta de leitos mata três por dia

JB Online / Rio

24/05/2018


O corre-corre da casa de seu Adeildo até a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da favela da Rocinha, na Zona Sul do Rio, para socorrê-lo de um infarto, na madrugada de ontem, não encerrou o drama vivido pelos familiares do aposentado de 83 anos. Após interná-lo na unidade de emergência, a família iniciou uma peregrinação, ainda sem fim, em busca de um leito de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) da rede pública. Seu Adeildo é apenas um dos milhares de pacientes que aguardam, sem sucesso, uma vaga de UTI na rede pública do estado. Pelo menos três pacientes morrem, por dia, nessa fila de espera, segundo a Defensoria Pública do Rio de Janeiro. 

Rotina que se repete sem solução na Justiça do Rio, o “tratamento cruel, desumano e degradante” a que a população fluminense está submetida por conta da falência múltipla das unidades de saúde do estado foi denunciado, na segunda-feira, em relatório enviado pela Defensoria Pública à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 

A defensora pública Raphaela Jahara, responsável por relatório sobre a carência de vagas na rede pública

Coordenadora de Saúde e Tutela Coletiva do órgão, Raphaela Jahara solicita no documento um aumento na oferta de leitos nas redes municipais e estadual, além de uma uni?cação da central de regulação de vagas de UTIs das redes municipais, estaduais e federais, o que acarretaria numa maior otimização das vagas.

Segundo o texto, faltam pelo menos 349 leitos no estado. O número foi levantado ainda em 2011, quando o Ministério Público ajuizou ação civil pública contra o governo estadual, exigindo a ampliação da rede. Apesar de o pedido ter sido parcialmente acolhido pela Justiça, com estado e município reconhecendo o problema, nenhuma solução foi dada até hoje.

O déficit de leitos foi estimado de acordo com o número de familiares que procuram a Defensoria Pública durante o plantão noturno do Tribunal de Justiça do Rio, das 18h às 11h, quando são recebidos pedidos de ajuda sobre os casos mais graves e urgentes, que necessitam de terapia intensiva. 

“Temos ações civis públicas pedindo a ampliação do número de leitos que ainda nem foram julgadas. Mesmo assim, a cidade do Rio de Janeiro fechou, recentemente, mais 34 leitos de CTI nos hospitais Pedro II, em Santa Cruz, e Albert Schweitzer, em Realengo. A coisa só piora e expõe a vida do cidadão a risco”, destaca a defensora.

Regina Célia expõe documento que indica a transferência do irmão para um leito de UTI, o que demorou oito dias para acontecer

Enteado de seu Adeildo, internado na UPA da Rocinha, o motorista Arinos Colman teme que seu padrasto engrosse as estatísticas dos mortos à espera de leito.

“O fato de a gente entrar na Justiça para conseguir vaga não garante absolutamente nada, porque simplesmente não há leitos suficientes. Estamos aguardando transferência e atendimento adequado há uma semana. Os médicos dizem que meu padrasto precisa de transferência com urgência. Ele pode morrer a qualquer hora”, conta o motorista. 

A mesma angústia é compartilhada pelas irmãs do aposentado Oliveiro Brizio Filho, 60 anos. Apesar de decisão judicial favorável, o paciente aguardou oito dias para ser transferido a uma unidade de saúde com UTI. Enquanto isso, o tratamento para insuficiência renal, pneumonia e infarto foi comprometido, e a luta pela vida está cada vez mais difícil.

“Essa situação é uma verdadeira tortura com quem precisa da rede pública. Mesmo recorrendo à Justiça, não há vagas. Vivemos num estado genocida, onde os recursos foram usurpados pelos nossos políticos. Enquanto isso, a mãe do Crivella teve um andar de um hospital público fechado inteiramente para atendê-la. É ou não é um estado genocida e desumano?”, indaga a irmã de Oliveiro, a aposentada Sandra Célia Brizio Dantas, 60 anos.

Outra irmã do paciente, Regina Brizio, 67 anos, conta que só conseguiu internar o irmão em unidade com o aparato adequado depois de pedir ajuda a conhecidos.

“Achei que não fôssemos conseguir mais a internação, até que surgiu uma vaga no Ipec (Instituto de Pesquisas Clínicas Evandro Chagas), na Fundação Oswaldo Cruz. Se demorasse mais um pouco, não sei se meu irmão ainda estaria vivo. Com a falha do poder público, a gente conta com a sorte”, criticou Regina. 

Estes são apenas alguns dos casos de pacientes que só conseguiram seu leito na UTI tardiamente, enumerados no relatório da Defensoria Pública.

Seu Geraldo, morreu aos 69 anos, após resistir cinco dias na UPA de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, aguardando transferência para UTI. Por ordem judicial, foi internado em unidade de terapia intensiva, mas, diante da demora, não resistiu e morreu logo depois. 

Em agosto de 2013, em vistoria a 50 unidades apenas na capital, o Ministério Público encontrou 812 pessoas aguardando internação. De julho de 2013 a junho de 2014, foram ajuizadas, em média, cerca de 153 demandas por mês, das quais 83% buscavam leitos de terapia intensiva. Os relatórios já apontavam que, dentre os pacientes cujas famílias recorreram à Justiça, mas não conseguiram cumprimento da decisão, a maioria morreu nas 24 horas seguintes.

Outra com história igualmente trágica foi dona Maria Joana, 53 anos. Paciente com doença pulmonar obstrutiva crônica, ela resistiu por 72 horas na UPA de Manguinhos, em abril de 2014. A demora em obter atendimento adequado, mesmo com ordem judicial em mãos, terminou na morte da paciente. Mas o descaso não parou por aí. Passados quatro anos, seus filhos, José Carlos e Taíza dos Santos não conseguiram ainda que a Justiça julgasse uma ação de compensação por conta de danos morais sofridos pela família.  

“Nesses casos, temos provas periciais, com laudo esclarecendo que a morte poderia ter sido evitada, se a transferência para uma UTI não tivesse demorado tanto. Mas as ações não são julgadas. Para quem core risco de morrer, cada dia faz muita diferença”, explica a defensora Raphaela Jahara, sobre a morosidade judicial.

Sem luz no fim do túnel 

Presidente do Conselho Reginal de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj), Nelson Nahon destaca que as decisões judiciais têm sido desrespeitadas pelo poder público, piorando ainda mais a situação da população.

“Há dois anos, em debate no Cremerj, representantes do governo estadual reconheceram que o déficit é de 150 leitos por dia para UTI. Faltam leitos para adultos e para crianças, sem distinção. A judicialização não resolve. Enquanto isso, a população agoniza e morre”, diz.