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12 anos da Lei Maria da Penha

29/08/2018

Profissionais da rede pública de saúde afirmam ainda existir grande subnotificação de casos

Médicos relatam avanços com Lei Maria da Penha, mas reforçam necessidade de mais ações

A lei que trouxe mecanismos para coibir a violência contra a mulher e criou os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher completa 12 anos neste mês de agosto. Segundo avaliação de 2015 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), na época de sua criação, a Lei Maria da Penha (LMP), como ficou conhecida,  já teve impacto nas taxas de homicídio de mulheres, com uma diminuição de 10%. Os números ainda estão aquém do desejado, mas é inegável o avanço conquistado. A afirmativa também é compartilhada pelos médicos que atuam nas emergências do Rio de Janeiro, que acreditam ser necessária uma ampliação das políticas públicas na luta contra o problema.

Em 2017, o Hospital Estadual Getúlio Vargas (HEGV) atendeu 57 mulheres que declararam serem vítimas de violência doméstica. Até junho desse ano, 30 atendimentos desse tipo já foram feitos na emergência do hospital. Embora a unidade não tenha um serviço especializado nesse sentido, conta com equipe de assistência social 24 horas.

Segundo a chefe de Equipe da Emergência da unidade, Alessandra Pereira, após a avaliação médica na Traumatologia, as pacientes são encaminhadas ao serviço social e são orientadas a fazer denúncia policial. Há, inclusive, policiais civis que ficam no HEGV. Ela ressalta que nem sempre as vítimas querem denunciar, mas são imprescindivelmente orientadas nesse sentido.

Há 15 anos na emergência, a médica acredita que os casos atendidos aumentaram depois da Lei Maria da Penha.

“Hoje notamos uma quantidade maior de casos de violência doméstica chegando aos hospitais, especialmente nos fins de semana, quando há maior consumo de drogas e álcool pelos agressores. Mas eu acredito que estamos vendo esses casos não porque eles estão acontecendo mais agora, e sim porque estamos em um processo de mudança de cultura e as pessoas estão com menos medo de denunciar e expor o problema”, frisa.

 

 Em busca de uma nova cultura

Pesquisa da Diretoria da Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), com dados do Disque-Denúncia, indica que a violência doméstica é a principal notificação de violência total contra as mulheres. Segundo o estudo, esse tipo de denúncia teve aumento significativo em 2017, quase dobrando em relação ao mesmo período do ano anterior. Esse aumento, no entanto, não necessariamente representa o recrudescimento de casos, mas de notificações.

A LMP é um mecanismo importante não só pelas suas ferramentas práticas e caminhos jurídicos, mas por seu valor simbólico na desnaturalização da violência contra a mulher, ressaltando-se o poder da denúncia e construindo-se uma nova cultura.

“A violência doméstica é um problema complexo, que exige um tratamento multidisciplinar e integral, como é preconizado pelo SUS”, destaca a diretora do CREMERJ Erika Reis.

Contudo, embora grande parte das vítimas não procure atenção médica quando sofre agressões, ainda são muitos os casos atendidos pelo SUS de mulheres agredidas pelos parceiros.

A pesquisa da FGV parte do pressuposto de que a violência doméstica segue ciclos, onde pode haver um acirramento da agressividade na relação até chegar ao crime de homicídio. Logo, uma contenção das agressões por meio dos mecanismos dispostos pela lei gera uma diminuição desses casos extremos.

“Na maioria das vezes, elas não contam o que aconteceu ou dão outros motivos, por isso acredito que tenhamos uma subnotificação. O número deve ser pelo menos umas três vezes maior do que podemos estimar. As mulheres que atendemos geralmente chegam com traumas, hematomas ou cortes na face. É mais comum serem atingidas na área do rosto”, conta a chefe da emergência do Hospital Municipal Souza Aguiar, Letícia Godinho.

A unidade, que tem a maior emergência da América Latina, fornece atendimento médico e oferece atenção no Serviço Social e na área de saúde mental, mas não tem suporte especial para as vítimas de agressão doméstica.

“Vemos diversos casos de violência na emergência. Como mulher, eles mexem comigo, mas também afetam toda a equipe. As mulheres chegam bastante fragilizadas e, muitas vezes, sem o apoio da família. Nós orientamos que procurem a Delegacia da Mulher, contudo, se elas não quiserem, não podemos fazer nada”, salienta Letícia, acrescentando que acredita ser importante a existência de um setor especial, que poderia facilitar no atendimento integral a essas ocorrências, e de investimentos públicos para buscar soluções nas raízes do problema.

 

 Serviço especializado e multidisciplinar

No Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João do Meriti, há um serviço especializado, o SOS Mulher, mas como a unidade não tem emergência aberta, ela acaba atendendo poucos casos: cerca de cinco por mês, entre violência doméstica e sexual.

O espaço do SOS Mulher foi criado em 2010, junto com o hospital, e tem uma estrutura física pensada para a proteção da paciente. A sala de exame tem duas portas, porque, segundo relatos dos profissionais de saúde, é comum o agressor ir atrás da vítima e ficar esperando que ela saia da consulta. Com duas saídas na sala, o médico pode encaminhar a paciente por essa segunda porta, dando-lhe mais segurança.

A equipe do SOS Mulher é multidisciplinar, contando com médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Por ser uma maternidade e não ter porta aberta, o perfil da paciente atendida é diferente.

“É mais comum descobrirmos sobre a violência doméstica durante o acompanhamento, por um relato da paciente a algum profissional, do que de fato por ela chegar machucada. Temos, inclusive, essa pergunta no questionário que passamos para elas. No ambulatório, damos suporte e continuidade a esse acompanhamento, entrando com o pessoal de assistência social também”, explica o coordenador da Obstetrícia da unidade, Philippe Godefroy.

Nos últimos dois anos, ele relata que houve uma aproximação do hospital com a Delegacia da Mulher, de forma que algumas vítimas são encaminhadas ao SOS Mulher pela própria delegacia para receberem atendimento médico.

Para a coordenadora de Psicologia do Heloneida Studart, Maria Luiza Cordeiro, a Lei Maria da Penha significou uma mudança de cultura e uma preocupação maior da área de saúde com esses casos.

“Antes, violência doméstica era considerada apenas caso de polícia, e não de saúde. Hoje temos consciência do papel dos profissionais de saúde nessa luta. Uma mulher nessa situação pode acabar adoecendo e tendo seu quadro agravado. A lei veio desmistificar e apresentar a anormalidade dessas situações. Nosso papel é orientá-las, mas é preciso que estejamos capacitados profissional e socialmente para isso”, defende.

 

Matéria especial publicada no jornal de Agosto/Setembro.