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Sob Pressão: medicina pública como arte

20/12/2017

 

Relatos médicos sobre o dia a dia em emergências públicas vira best seller e minissérie

Autor do estrelado livro Sob Pressão e roteirista da minissérie homônima, exibida na Rede Globo, o médico carioca Márcio Maranhão, embora não atue mais na saúde pública, afirma ainda ser um apaixonado pelo SUS.

Para entender como os caminhos do médico se cruzaram com a literatura e a dramaturgia, o Jornal do CREMERJ o convidou para fazer um passeio por toda a sua trajetória profissional e recordar os tempos de emergência a bordo das ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e nos corredores de diversas unidades públicas de saúde, onde ele lutou contra o tempo (e dezenas de carências) para salvar vidas.

Formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Márcio nunca teve dúvidas quanto à carreira que iria seguir. Apesar de ninguém em sua família ser médico, ele conta que seu jeito de cuidar e preocupar-se com o próximo já indicava que a medicina era o seu caminho.

– Sempre quis operar e, desde o terceiro ano da faculdade, frequentava plantões de emergência. Através da indicação de professores e amigos, passei pelo Hospital Municipal Salgado Filho, Hospital da Posse e depois Hospital Federal do Andaraí – conta.

Pouco antes de terminar a faculdade, inspirado por um brilhante professor, Márcio se encantou com a cirurgia torácica, mas preferiu esperar um pouco até iniciar a residência. Ele optou por prestar serviços para a Aeronáutica e descobriu que havia um serviço de cirurgia torácica de excelência no Hospital do Galeão.

– Tudo conspirou para a escolha acertada da minha especialidade e, ainda por cima, um amigo me indicou para ajudar exatamente na área cirúrgica – disse o médico, recordando que já trabalha no setor de cirurgia torácica do HFAG há 23 anos, sendo os últimos três anos como chefe de serviço.

Porém, em determinado momento, ele achou que não bastava os infinitos estudos e seu título de especialista. Márcio sentiu a necessidade de mais uma conquista que, segundo ele, seria a maior de todas: ser um médico do Estado. Prestou concurso e logo começou a rodar pelos corredores do Hospital Estadual Adão Pereira Nunes, no bairro de Saracuruna, em Duque de Caxias.

– Fiquei lá por nove anos e amadureci muito naquela emergência. Era o único que atendia trauma e fazia cirurgias eletivas – recorda.

Em paralelo aos plantões no Hospital de Saracuruna, Márcio atuou por um ano na ambulância do Samu.

– O Samu me proporcionou conhecer o paciente em seu habitat. Eu era o único braço representando o Estado. Muitas vezes, era apenas eu quem definia se uma pessoa iria viver ou morrer. Isso é muito forte – emociona-se ele, narrando suas visitas a locais de extrema pobreza, onde alguns de seus pacientes nunca tinham visto um médico em toda a vida.

Segundo Márcio, a ambulância deu crédito e possibilidade de entrar em ambientes violentos e atuar como médico.

– A minha presença fazia toda a diferença, e salvar uma criança, que eu sabia que não teria chance de viver se não fosse o meu trabalho, não tem preço. Pensar nisso me fazia não desistir de enfrentar tantos riscos e o imenso descaso dos nossos governantes em relação à saúde – diz.

O livro

Com o passar do tempo, Márcio entendia as dificuldades vividas nas emergências como valiosas experiências, e iniciou um detalhado diário sobre os casos e seus pacientes.

– Situações de negociações com traficante, algo inimaginável para mim, proporcionaram-me inúmeras histórias, além da vivência no Hospital de Saracuruna. Houve pacientes que morreram devido à falência total do sistema de saúde, sem leitos de terapia intensiva. Não tínhamos respirador, sala cirúrgica e nem um dreno – recorda.

Por volta de 2014, as histórias de Márcio geraram interesse em pessoas que não são da área médica, como por exemplo, o cineasta e diretor de cinema Claudio Torres.

– Ele é um amigo e ficava impressionadíssimo com os relatos. Claudio me apresentou a uma editora e a falta de um tom jornalístico aos relatos foi resolvida com a ajuda da jornalista Karla Monteiro, que durante um ano me acompanhou em plantões, colheu informações, depoimentos e assina comigo a autoria do livro Sob Pressão – conta.

Na época em que o livro estava sendo produzido, havia uma febre nos Estados Unidos de séries sobre plantões médicos. Uma ideia puxou a outra e o livro ganhou uma versão romanceada para as telas de cinema e, posteriormente, virou minissérie global.

– Em determinado momento, percebi que através do livro eu poderia atingir um número maior de pessoas, e o que falta na saúde é comunicação. Os médicos precisam falar melhor com a população, que vê erroneamente a face da inoperância no profissional de saúde. Quis mostrar que a ruptura da sociedade com a figura do médico não é salutar – desabafa.

Foi assim que Márcio viu suas histórias chegarem a todos os brasileiros e ele tornar-se um roteirista.

– Tanto o filme quanto a série são inspirados livremente no meu livro. Porém, todos têm a ver com o que precisa ser falado e quais os temas que podem estar a serviço do entretenimento e da dramaturgia. Por isso, tivemos episódios sobre transplante, violência contra a mulher, atenção primária, falta de penicilina para a sífilis e HIV. A série é um recorte histórico sobre o subfinanciamento crônico da saúde pública – explica.

Na opinião do cirurgião, embora o Brasil tenha passado por enormes avanços em relação à atenção primária e tenha programas exitosos na área da saúde pública – como a queda na taxa de mortalidade infantil e os programas de HIV –, ainda há uma grande parte do Sistema Único de Saúde que precisa ser revista.

– Eu vejo com muita preocupação essa ideia de plano de saúde acessível. Aliás, desafio uma pessoa a sentir-se amparada no caso de precisar operar uma prótese de joelho, por exemplo. Essa proposta retrata a incoerência da nossa política, e a população precisa saber disso – ressalta.

Graças ao impacto positivo da série, em 2018 entrará no ar a segunda temporada do programa. Márcio conta que tem contribuído como consultor técnico. Para ele, a linguagem audiovisual é uma enorme contribuição na abordagem de questões importantes para a saúde pública e ajuda na discussão de ideias e melhorias para o povo.

Atualmente, Márcio Maranhão acumula as funções de chefe do Serviço da Cirurgia Torácica do Hospital de Força Aérea do Galeão (HFAG), coordenador do Centro Cirúrgico do Hospital Barra D’Or.

– Assinar a minha exoneração do Estado foi um dos atos mais tristes da minha carreira. Queria ouvir dos representantes que tudo iria melhorar para nós, médicos e pacientes. Mas quero reforçar que o sonho por políticas públicas mais justas ainda permanece – garante.

 

Matéria publicada na edição de novembro do Jornal do CREMERJ.