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Clipping - Barreira à internação involuntária

O Globo /

06/08/2019


Falta de leitos pode dificultar atendimento a usuários de drogas

Por decreto, o prefeito Marcelo Crivella estabeleceu ontem regras para a internação involuntária, por até 90 dias, de moradores de rua que são usuários de drogas. Mas a medida pode esbarrar na falta de estrutura do município. Hoje, a maior parte das unidades de saúde com serviços de referência em saúde mental, dizem especialistas, já está com os leitos ocupados, antes mesmo da nova demanda que será gerada. E os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) sofrem com problemas como a falta de profissionais e de medicamentos. Um levantamento feito ano passado pela própria prefeitura mostrava que havia quase dois mil dependentes químicos espalhados por cracolândias na cidade. 

Há quatro institutos de saúde mental municipais: Phillippe Pinei, Nise da Silveira, Juliano Moreira e Jurandyr Manfredini. Dados do Sistema de Informação Hospitalar disponíveis no painel de gestão do município, a que O GLOBO teve acesso, mostram que eles têm 439 leitos, sendo 314 (71,5%) deles ocupados ontem, 99 (22,5%) impedidos de serem usados, por questões como falta de recursos humanos e material, e só 26 (6%) livres. Mesmo assim, a expertise desses hospitais é mais ligada ao tratamento de transtornos mentais do que a usuários de droga. 

Também são quatro os hospitais gerais com internação para saúde mental. Dos 15 leitos do Raul Gazolla, em Acari, nenhum estava livre ontem. No Evandro Freire, na Ilha, apenas uma das 15 vagas estava disponível. No Pedro II, em Santa Cruz, seriam 19 leitos, e no Lourenço Jorge, na Barra, cinco. Não havia mais informações disponíveis sobre essas duas últimas unidades. 

Ainda há seis CAPS especializados em atendimento de usuários de álcool e drogas os CAPSad - , dois deles com unidades de acolhimento de adultos, com cerca de 60 vagas. Um artigo científico ainda de 2016 já apontava que de 90% a 100% desses leitos estavam sempre ocupados. Desde então, as cracolândias, por exemplo, não foram contidas. Uma única delas pode ter uma concentração de mais de 60 usuários, como chegou a ser levantado pela prefeitura ano passado naRuaLuisaValle, em Del Castilho. 

- Muitas vezes, você quer internar alguém, mas não consegue vaga. Nós não temos muitas opções de leitos psiquiátricos em unidades de saúde. As estruturas dos CAPSad 24 horas são pequenas, e, por vezes, sofrem com a falta de profissionais - afirma o médico Carlos Vasconcelos, do coletivo Nenhum Serviço de Saúde a Menos. 

FALTA REGULAMENTAÇÃO

As secretarias municipais de Saúde e de Assistência Social e Direitos Humanos informaram que ainda estão trabalhando na regulamentação do decreto, que deve ficar pronta em cinco dias. O vereador Paulo Pinheiro (PSOL) questiona quem serão os profissionais que atestarão as internações involuntárias, uma vez que, pelo decreto, elas terão que ser determinadas por um médico. Além disso, ele teme que sejam feitas internações em comunidades terapêuticas, que ele considera inadequadas. Pinheiro pretende convocar uma reunião na Câmara para discutir o assunto. 

Já o defensor público estadual Pedro González cita o que ele chama de "aberrações" jurídicas. 

- O decreto abre caminho, por exemplo, para a condução compulsória de moradores de rua para a realização de um cadastro. E uma demanda antiga, mas não dessa forma. Fere direitos como o ir e vir das pessoas - afirma ele, que estuda formas jurídicas para contestar pontos do decreto. 

Sobre o resultado dessas medidas, o pesquisador Paulo Fagundes, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp), diz que de pouco adiantarão as internações se elas não forem acompanhadas de ações complementares: - Hoje, no Rio, o tempo médio das internações nas unidades de saúde mental é de 20 dias. E depois que essa pessoa sair da internação? Eu citaria, por exemplo, a importância de questões como moradia e trabalho. Caso contrário, muitas delas podem voltar para as ruas. 

Para o professor Osvaldo Luiz, que dirige a ala de desintoxicação do Hospital Universitário Pedro Ernesto, a internação involuntária é válida para pessoas que colocam em risco a própria vida e as dos outros, mas ele alerta que não há vagas na rede pública para todos : - O ambiente tem que ser adequado e com profissionais preparados. 


Em SP, só se o paciente quiser

>Implantado em 2017 em São Paulo, o programa Redenção, hoje voltado a dependentes químicos na cracolândia, não utiliza internação involuntária. Segundo o coordenador do projeto, o psiquiatra Arthur Guerra, a ideia foi considerada, mas não houve apoio judicial: 

> - É preciso respeitar a singularidade do paciente e da cidade em questão. Conseguimos diminuir a dimensão da cracolândia e aumentar os tratamentos sem usar o recurso da internação involuntária. 

Em 2017, o assunto também foi tratado a nível estadual, pelo então governador Geraldo Alckmin, que descartou essa possibilidade. Na ocasião, ele afirmou que a internação à força de dependentes químicos só deveria acontecer "em último caso" e que "a última palavra é do juiz". 

> Apenas uma internação involuntária foi adotada até agora no Redenção, conta o coordenador do projeto. O programa já internou 10,2 mil pessoas na atual gestão, todos voluntários. Hoje, o tratamento de dependentes químicos no Redenção tem o foco na abstinência.