Clipping - ‘A POPULAÇÃO PERDEU ACESSO À INFORMAÇÃO’
O Globo / Sociedade
17/02/2019
Moralismo e campanhas ineficazes sobre HIV são cruciais no aumento na detecção do vírus em jovens
Salvador Corrêa recebeu o diagnóstico de HIV aos 27 anos,
após uma relação sexual. Não sabe se foi em um episódio em que não usou
preservativo, ou em outro em que a camisinha estourou. Abatido, isolou-seda
família e dos amigos. Resolveu, então, desabafara angústia em seublog, on de
escrevia anonimamente como era carregar o estigma de uma “pessoa contaminada”.
— É um sentimento de solidão total, de carregar um segredo que não pode ser
revelado porque há muito preconceito — revela Salvador, hoje com 34 anos.
—Parece que vocêéo vírus. Que não pode mais tocar ou se aproximar de ninguém.
Primeiro, sofri por ser homossexual. Depois, aparece esse novo desafio.
A história de Salvador comoveu seus leitores, que lhe
mostraram que, devido ao avanço dos tratamentos médicos, o medo de ver o rosto
e o corpo transformados pelo HIV não condiz coma realidade. Salvador reuniu ost
ex tosem ume-book, “O segundo armário ”, adaptado recentemente parau ma peça
teatral—uma nova temporada está prevista para abril, no Rio. Hoje, ele é
ativista no combate ao vírus e identifica os jovens como o público mais carente
de assistência. De fato, o Boletim Epidemiológico HIV Aids 2018, divulgado pelo
Ministério da Saúde, mostra como a detecção do vírus entre os jovens aumentou
em apenas dez anos. Entre 2007 e 2017, a notificação de casos de HIV de 15 a 24
anos aumentou aproximadamente 700%. Especialistas acreditam que a explosão de
ocorrências se deve à maior disponibilidade de testes e a campanhas de
conscientização cada vez mais acanhadas:
— O jovem não usa mais camisinha, mas o discurso não deve
ser restrito a isso. É fato que as campanhas e o debate têm sido silenciados
por forças conservadoras. Diretor-presidente da Associação Brasileira
Interdisciplinar de Aids (Abia), Richard Parker acredita que o país vive uma
epidemia de
HIV. Nos últimos anos, campanhas voltadas para os públicos
mais vulneráveis à infecção pelo vírus, como transexuais e profissionais do
sexo, provocaram protestos entre setores da sociedade. — Não considero que as
pessoas perderam medo, mas sim acesso à informação — avalia. — Desde 2012, as
campanhas são cada vez menos explícitas e não direcionadas ao público que mais
precisa de esclarecimentos.
PERDA DE PRESTÍGIO
Parker alerta que o panorama pode piorar neste ano. A duas
semanas do carnaval, o site do departamento do Ministério da Saúde responsável
pela prevenção e controle de HIV/Aids não cita as ações especiais previstas
para o feriado.
— Os ministros falam sobre necessidade de se respeitar a
família brasileira e deixar o debate sobre a educação sexual para os pais. É a
receita para o desastre — condena. — Nos anos 1990 e 2000, havia grandes
mobilizações, investimentos e programas nacionais constantes. Hoje, nega-se o
debate público, não há iniciativas como o combate à homofobia nas escolas.
Procurado pelo GLOBO, o Ministério da Saúde não forneceu informações sobre o
investimento em campanhas contra o HIV para este ano.
Para Marcio Villard, coordenador geral do Grupo pela
Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids (Pela Vidda), “um rapaz e
uma moça de 16 ou 17 anos que se infectou não foi promíscuo nem relaxado”. — No
mundo em que vivemos, com tanta tecnologia e informação, às vezes um tema pode
passar batido. Daí a necessidadede haver programas específicos para este
público — sublinha. — A juventude não vivenciou o momento forte da epidemia,
não tem percepção sobre o risco, não conhece métodos de prevenção, como a
Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PrEP). As escolas deixaram de falar sobre
saúde e doenças sexualmente transmissíveis (DST). Antes um modelo
internacional, ao promover gratuitamente a distribuição de drogas retrovirais
no SUS, o Brasil vem perdendo prestígio na luta contra o HIV. —Em todo o mundo,
o número de casos caiu 11%, segundo um relatório do Programa das Nações Unidas
sobre HIV/Aids de 2017. No Brasil, cresceu 3% — lamenta Villard. — A sociedade
voltou a ter a percepção de que HIV é coisa de gay, prostituta e drogado. A
pediatra e infectologista Maria Letícia Cruz ressalta que o diagnóstico e a
adesão ao tratamento são ainda mais problemáticos entre adolescentes.
Os jovens têm um comportamento que, de alguma forma, os
coloca em situação de maior risco — destaca Maria Letícia, que é doutora em
saúde coletiva pela Fiocruz. — É uma faixa etária que não viu a epidemia da
década de 1980. Já nasceram em uma época em que o HIV tem tratamento, então não
têm muita noção da gravidade dos problemas que a infecção pelo vírus pode
causar. São o pior grupo de adesão ao tratamento. Aceitar o diagnóstico nem
sempre é uma coisa fácil.
—
NOVA ABORDAGEM
Doutora em psicologia clínica pela USP, Vera Lúcia
Mencarelli destaca que a abordagem ao atendimento aos jovens mudou.
— No passado, procurávamos dimensionar corretamente o
sofrimento psíquico do paciente soropositivo, mostrando que ele não vai morrer
amanhã — recorda. — Agora, precisamos dizer: “Cuidado! Tem que tomar o remédio
direito”. Devemos mostrar aos jovens comoé grave não aderir ao tratamento. A
psicóloga acredita que a falta de uso de preservativo está associada a outras
condutas de risco características dessa faixa etária, como o aumento dos casos
de depressão, tentativas de suicídio e automutilação. Já a maior
vulnerabilidade dos homens poderia ser atribuída à maior liberdade sexual
masculina, em comparação às mulheres, além da dificuldade de diálogo entre os
parceiros sobre o uso da camisinha. — Quando há envolvimento com uma mulher, a
negociação sobre o preservativo é reforçada porque se considera a possibilidade
de uma gravidez. Isso não acontece em uma relação entre dois homens. Nesse
caso, segundo alguns pacientes, um dos parceiros pode provocar um desconforto
caso sugira o uso da camisinha —explica Mencarelli.