Clipping - ‘CONTROLAR O CÂNCER VALE MAIS QUE A CURA’
O Globo / Especial
04/02/2019
Dr. Daniel
Tabak/ ONCOLOGISTA
Especialista destaca os avanços da imuno-oncologia mas reconhece que seu alto custo limita o acesso da população ao tratamento, defendendo gastos com prevenção
A ideia de descobrir uma cura definitiva e eternamente
válida para o câncer talvez não seja o melhor modo de se lidar com a doença
que, no Brasil, atingirá cerca de 600 mil pessoas neste ano, segundo o
Instituto Nacional de Câncer (Inca). Para o oncologista e hematologista Daniel
Tabak, a dificuldade começa na própria definição de cura, uma vez que novos
métodos de detecção podem ser capazes de encontrar células tumorais mesmo após
os cinco anos em que, sem a doença, os pacientes são considerados curados.
Tabak destaca que as pesquisas atuais, que apontam para a evolução da
imuno-oncologia nos últimos anos, são vitais para a transformação do câncer em
uma doença crônica, que permita aos indivíduos continuar com suas atividades
normais ao mesmo tempo em que mantém a patologia sob controle em seus organismos.
O
que significa curar o câncer hoje em dia?
Atualmente, dizemos que um período de cinco anos sem os
sinais de câncer significa a cura. Isso significa a não detecção dessa doença
pelos métodos atuais. Hoje esse conceito está mudando. À medida que utilizamos
meios mais sensíveis, muitas vezes é possível identificar a presença de células
tumorais, e não conhecemos o significado disso: as pessoas podem estar curadas
e potencialmente apresentar alguma evidência de câncer que não sabemos como vai
evoluir. A definição também muda se levarmos em conta a especificidade de
algumas doenças — o melanoma, tipo de câncer de pele, por exemplo, pode
apresentar recidivas até 15 anos depois. Essa pessoa que teve o diagnóstico 15
anos antes e que ainda tem células cancerosas pode estar levando uma vida
normal hoje em dia. Posso dizer que essa está curada? Eu diria que não. Então a
definição de cura é complicada.
Qual
a tendência para a definição de cura do câncer ?
O que tem sido considerado mais valorizado é a relação
entre o câncer e nosso sistema imune. Desde 2012, essa relação se tornou cada
vez mais próxima: a Sociedade Americana de Oncologia classificou os avanços na
área da imunoterapia como os mais importantes, e o Prêmio Nobel de Medicina em
2018 coroou pesquisadores nessa área (os imunologistas James P. Allison, dos
Estados Unidos, e Tasuku Honjo, do Japão). Nesse sentido, acredito que a cura
dependa de duas coisas: a natureza do câncer e o hospedeiro que é capaz de
reagir. Eu diria que atualmente a questão mais fundamental não é exatamente a
cura, mas a transformação do câncer em uma doença crônica, em que os indivíduos
consigam conviver normalmente com a ajuda de tratamentos acessíveis. Nesse
sentido, controlar o câncer vale mais que a cura.
Podemos
dizer que a oncologia atingiu alguma grande conquista recentemente?
O que mudou a oncologia nos últimos anos foi exatamente
esta nova área chamada imuno-oncologia. Sempre reconhecemos que a relação do
câncer com o sistema imunológico era fundamental, mas a gente não tinha ideia
da dimensão disso. A célula tumoral é capaz de enganar nosso sistema
imunológico ao criar uma espécie de escudo que prejudica sua identificação e
destruição pelo nosso corpo. Diante de novas moléculas que foram identificadas
recentemente, o que rendeu o Nobel a esses dois pesquisadores em 2018, esse
escudo é retirado, e conseguimos destruir a célula tumoral. Isso abriu um
universo enorme, e estão surgindo uma infinidade de novas moléculas capazes de
fazer esse papel. Assim estamos modificando nosso sistema imunológico para
criar “supercélulas” e atacar o câncer.
Mas
há também efeitos colaterais, certo?
Existem entraves na administração desses novos medicamentos
que não os transformam numa panaceia. De fato a imunoterapia representa um
avanço muito grande, mas a gente tem que lembrar que essas drogas liberam nosso
sistema imunológico. Isso vai reconhecer as células estranhas que são câncer,
mas em cerca de 15% dos casos, essas reações imunológicas podem se voltar
contra outras células do nosso corpo, que precisa de freios. O que estamos
fazendo é retirar esses freios. Se eu for picado por um inseto, meu corpo
produz uma reação inflamatória na ferida, e se retiramos todos os freios do
sistema imunológico, isso pode se alastrar para o corpo inteiro. Isso também
pode acontecer em um tratamento contra o câncer. Essas drogas trouxeram novos
aspectos com os quais ainda estamos aprendendo a lidar.
Quais
são as expectativas de a imuno-oncologia alcançar o grande público?
Esta é uma questão fundamental: o custo anual de uma dessas
drogas é de aproximadamente US$ 120 mil. Temos cerca de 60 mil novos casos de
câncer de pulmão e metade deles vai evoluir para um quadro avançado. Para
tratar essas 30 mil pessoas com as novas drogas, gastaríamos, com cada uma delas,
cerca de R$ 450 mil por ano, por um tempo indefinido. Se a gente considerar que
metade dos pacientes estará viva depois de quatro anos, devemos pensar em como
financiar esse cenário — e essa é uma pergunta ainda sem solução. O que se
espera é que algum mecanismo seja descoberto de forma a interromper a
necessidade de uso do medicamento depois de certo tempo. Essas drogas não estão
disponíveis no SUS, e o que temos visto é um processo cada vez maior de
judicialização da medicina, com pessoas entrando na Justiça para ter acesso a
esses tratamentos dentro do sistema público ou privado. Acho que até agora não
há fórmula mágica.
Segundo
um relatório de 2018 da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, os casos
no mundo aumentaram 20% nos últimos seis anos. Qual o motivo desse crescimento?
Certamente o maior causador de câncer até 2030 será a
obesidade. A gente deve reconhecer o sobrepeso como uma fábrica de radicais
livres e de substâncias tóxicas agressivas ao DNA. Se no início do século XX a
gente tinha o cigarro como um grande causador da doença, ele está sendo
substituído pela obesidade, fora a ausência de atividades físicas. Com
prevenção focada nesses dois aspectos, haveria uma redução de 30% nos casos de
câncer de mama, por exemplo. Precisamos investir na prevenção pensando em
quanto vamos economizar no futuro. Os gastos anuais com câncer no mundo são
estimados em US$1 trilhão, mas acreditase que a cada US$ 1 bilhão investido na
prevenção, são economizados US$ 100 bilhões em tratamentos.
Onde
o Brasil está em relação ao combate ao câncer?
Acho que o Brasil está muito mal, mas houve algumas
iniciativas aqui absolutamente incríveis, entre elas o Hospital de Amor, em
Barretos, São Paulo. A pesquisa e os tratamentos dessa instituição filantrópica
são de ponta, um exemplo de que essa realidade pode ser instituída no país. A
situação no Brasil é a de que até gastamos, mas gastamos muito mal com relação
ao câncer. Investimos pouco na detecção precoce da doença e muito com
tratamentos caros para pacientes em estágio já avançado. Fora isso, temos
grande dificuldade em valorizar os cuidados paliativos, e é lamentável que
tenhamos um acesso restrito da população a esforços que estão além da doença. A
lei dos 60 dias, por exemplo, que estipula que o tratamento deve começar no
máximo 60 dias após o diagnóstico na rede, é falaciosa. Até que uma paciente de
câncer de mama faça todos os procedimentos necessários, desde o reconhecimento
de um nódulo até a mamografia, a biópsia e o início do tratamento, passando por
diferentes unidades e tendo que esperar entre esses procedimentos, já se
passaram meses.
O Globo