Clipping - AS NOVAS PÍLULAS MÁGICAS
O Globo / Época
11/01/2019
Drogas que supostamente aumentam a inteligência ganham adeptos, apesar de pesquisas desmentirem seus efeitos
Os olhos do advogado Waldemar Ribeiro Chaves — um jovem de
ombros largos, queixo quadrado e os bíceps de um halterofilista — deixaram
escapar um brilho de entusiasmo logo que ele começou a falar sobre o coquetel
de comprimidos que toma diariamente, quatro vezes ao dia. São ao menos cinco
pílulas, além de outros compostos em pó, que ele consome com água antes de
iniciar a rotina de trabalho. Pílulas para, supostamente, melhorar a memória,
afiar o raciocínio ou apurar a concentração: “Sem elas, jamais faria meu
trabalho na velocidade em que faço hoje”, contou, enquanto organizava o arsenal
sobre a mesa do escritório, uma sala com janelas amplas e vista para as ruas
bem arborizadas do bairro de Pinheiros, região nobre de São Paulo.
As substâncias consumidas por Ribeiro são chamadas,
popularmente, de nootrópicos. Nos Estados Unidos, onde viraram febre entre
estudantes universitários e empreendedores do Vale do Silício, ganharam um nome
mais simpático — smart drugs. Ou drogas para a inteligência. Trata-se de uma
cesta de compostos, que variam de suplementos naturais — como ginkgo biloba — a
remédios psiquiátricos — como Ritalina e Venvanse. Essas substâncias crescem em
popularidade, sob a promessa de melhorar as habilidades cognitivas de quem as
usa. Ribeiro carrega as suas a tiracolo, em uma maletinha preta, fechada por
zíper. Garante que, para ele, funcionam às mil maravilhas.
Seu dia começa com uma dose de cinco nootrópicos, por volta
das 8 da manhã. Todos têm nomes curiosos, como Huperzine — para a memória — e
Aniracetam — para aguçar a atenção. O coquetel leva ainda uma dose de Noopept,
um pó branco supostamente sintetizado na Rússia. É o pacote básico, no qual
Ribeiro confia para desempenhar atividades cotidianas. Com ele, sente-se mais
produtivo, mais concentrado. Demora mais a se cansar.
Nos dias em que precisa frequentar eventos sociais
importantes, ele adiciona elementos à mistura. É quando consome 600 miligramas
de Fenilpiracetam: “Com ela, eu sinto que absorvo informação e concateno ideias
muito rapidamente”, contou. A substância é derivada de uma antiga droga usada
para tratar pacientes de Alzheimer. “Ela me ajuda a manter conversas
interessantes e fazer contatos profissionais. Algo de que um advogado precisa”.
A droga integra também seu “pacote pré-balada”, porque o deixa mais desinibido.
Nas ocasiões em que o trabalho do escritório se acumula —
coisa rara desde que passou a usar os nootrópicos, ele garantiu —,
Ribeiro recorre à lisdexanfetamina, o Venvanse. Uma espécie
de estimulante, de venda controlada, a lisdexanfetamina é comumente adotada no
tratamento de transtorno de déficit de atenção. Ribeiro nunca foi diagnosticado
com o problema. Usa a droga — cuja receita obtém com um amigo psiquiatra —
porque ela o ajuda a manter a concentração em atividades maçantes: “Mas eu sou
uma pessoa elétrica, e ela me deixa ansioso. Prefiro evitar”. Para os momentos
em que o remédio lhe causa crises de ansiedade, Ribeiro carrega a solução na valise:
uma caixinha de Rivotril.
Otermo nootrópicos foi cunhado pelo químico romeno Corneliu
Giurgea em 1972, a partir das palavras gregas para “mente” e “dobrar”. Com
formação em psicologia, Giurgea tinha especial interesse pela química cerebral.
No começo dos anos 60, ele e seus colaboradores criaram um composto a que
chamaram piracetam — uma sequência de carbonos que, Giurgea acreditava, seria
capaz de proteger os neurônios e aprimorar a memória. Ao testar a substância em
ratos, o cientista obteve resultados que sugeriam melhoras na memória de curto
prazo. Mas não soube explicar por quê.
Giurgea morreria em 1995, sem saber exatamente como o
piracetam atuava sobre o cérebro: “Mesmo hoje, não é claro qual seu mecanismo
de ação”, disse o neurocientista Eric Chudler, diretor do Centro de
Neurotecnologia da Universidade de Washington. “Acredita-se que ele atua sobre
o metabolismo celular, modificando a quantidade de oxigênio consumida pela
célula.” As dúvidas não impediram que a fama do piracetam se propagasse. O composto
criado por Giurgea deu origem a uma nova classe de drogas, os racetams. E os
efeitos do piracetam sobre o organismo inspiraram o conceito original de
nootrópicos: segundo Giurgea, uma substância capaz de aprimorar o funcionamento
cerebral sem causar efeitos adversos acentuados.
Hoje, o significado do termo pode variar conforme o
interlocutor: “Considero nootrópicos qualquer substância que melhore meu
desempenho cerebral”, contou Ribeiro. A iniciação do advogado nesse universo
aconteceu há cerca de seis anos. Recém-formado e ambicioso, Ribeiro tentava
conciliar a rotina do escritório às demandas de duas pós-graduações
simultâneas. Em pouco tempo, estava esgotado. Foi quando descobriu o Noopept, o
nootrópicos russo. A compra foi feita pela internet. Ribeiro percebeu
resultados depois de duas semanas de uso: “Um dia, notei que tinha passado
horas trabalhando sem me cansar, sem perder o foco. Era a droga agindo”,
lembrou. “Hoje, sinto como se meu cérebro fosse um polvo, cheio de tentáculos”,
disse, comprimindo os olhos miúdos à medida que sorria. “Vou pescando as
informações do mundo a minha volta, degluto e uso imediatamente.”
Foi entre estudantes universitários e profissionais do
mercado financeiro que os nootrópicos primeiros ganharam fama. Eles soavam como
soluções ideais para resistir a ambientes hipercompetitivos e com elevada carga
de trabalho. Sua popularização contou ainda com o trabalho diligente de gurus
do Vale do Silício. O americano David Asprey foi um dos mais notórios. Em 2013,
Asprey — um homem de barba cerrada, cabelo escorrido e fala pausada — chamou a
atenção das celebridades americanas ao criar o “bulletproof coffee”. Uma
espécie de café turbinado com manteiga clarificada e óleo de coco. Segundo
Asprey, a bebida era capaz de fornecer energia, fazer emagrecer e, de quebra,
clarear o raciocínio. A atriz Shailene Woodley e o apresentador Jimmy Fallon se
tornaram adeptos.
Quem se aventurasse pelo site de Asprey ainda encontraria
dicas de exercício para ganhar músculos rapidamente, receitas infalíveis para
curar gripe e... textos sobre os nootrópicos mais quentes do momento. Asprey
dizia ter começado a usar as substâncias em 1997, enquanto concluía seu MBA na
Universidade da Pensilvânia. Desde aquela época, sua droga de predileção é a
modafinila — uma substância indicada, oficialmente, para o tratamento de
narcolepsia: “Todo mundo no Vale do Silício usa modafinila”, disse Asprey
durante uma entrevista em 2013.
A modafinila acabou por se tornar um dos nootrópicos mais
populares do mundo. Os dados a respeito são esparsos, mas, segundo a
Pesquisa global sobre drogas (GDS, na sigla em inglês), a
“moda” — como ficou conhecida no meio — foi o nootrópicos cujo consumo mais
cresceu entre 2015 e 2017. A pesquisa envolveu 29 mil pessoas em 15 países. Os
participantes responderam a um questionário pela internet, anonimamente. Em
2017, 6,6%
dessa amostra havia usado algum nootrópicos ao menos uma
vez durante o ano. E 2,4% haviam recorrido à moda. Entre os brasileiros que
participaram da pesquisa, 0,9% consumiram modafinila, ou seus derivados, na
esperança de ter ganhos cognitivos.
Boa parte dos nootrópicos pode ser comprada on-line, de
sites que vendem os medicamentos como se fossem suplementos naturais. É também
em sites e fóruns on-line que os interessados encontram instruções para o uso
das substâncias. Os mais dedicados consomem um conjunto delas, e os sites dão
instruções para montagem do pacote, ou “stack”, perfeito: “Para montar um
stack, a pessoa primeiro tem de determinar que resultados ela quer”, explicou,
didático, o publicitário Renan Mota. “E, a partir daí, encontrar um nootrópicos
base. Ao qual ela se adapte bem.”
Há pouco menos de um ano, Mota se dedica a testar novos
nootrópicos e relatar suas experiências em um site. Nas comunidades de biohackers
— como se intitulam pessoas interessadas em usar tecnologia para melhorar o
desempenho do corpo —, a página se tornou referência. Ele também mantém um
grupo de WhatsApp onde cerca de 100 pessoas — a maioria de São Paulo e do Rio
de Janeiro — trocam impressões sobre as drogas e suplementos que usam.
Diagnosticado com déficit de atenção e hiperatividade na
adolescência, Mota contou que nunca se adaptou aos medicamentos receitados por
seus médicos. Já adulto, decidiu experimentar alternativas por conta própria:
“Foi pesquisando na internet que descobri o fluoromodafinil”, lembrou. A
substância, uma derivação da modafinila, o ajuda a manter a concentração nos
dias em que precisa acelerar um trabalho. “Antes dos nootrópicos, eu sentava
diante do computador e sentia uma onda de ansiedade”, contou. Agora, trabalha
concentrado até o fim.
Seu stack varia de acordo com a carga de trabalho ou
conforme surjam novas substâncias que ele queira testar. Cada teste dura cerca
de um mês. Há o temor de que o novo químico cause efeitos colaterais: “Mas eu
sempre uso a dosagem mínima, por segurança”, afirmou. Para ele, os nootrópicos
viraram uma espécie de moda em ascensão: “O uso dos nootrópicos é uma tendência
sem volta”.
Aconfiança de Mota esbarra na ciência. Ainda há poucas
evidências de que as smart drugs tragam benefícios cognitivos. Compostos
populares, como o piracetam e o Noopept, foram pouco investigados pela ciência
— no caso do último, há estudos sugerindo que promova ganhos de memória em
ratos. Mas nenhuma pesquisa robusta indica efeitos semelhantes em humanos. As
mesmas dúvidas se repetem para a modafinila: embora seja eficiente para casos
de narcolepsia, não há comprovação de que melhore o raciocínio.
Em 2013, uma equipe de pesquisadores da Universidade da
Califórnia e da Univer-
sidade de Chieti-Pescara, na Itália, ministrou doses de
modafinila a 26 voluntários saudáveis. Na sequência, pediu que realizassem
testes de dificuldade crescente. O objetivo era pôr à prova os efeitos da droga
sobre a inteligência fluida, aquela usada na resolução de problemas cotidianos.
Os voluntários que usaram modafinila tiveram resultados semelhantes aos dos
participantes que receberam placebo.
O efeito placebo pode explicar também os benefícios
sentidos por pessoas saudáveis que recorrem à Ritalina ou ao Venvanse.
Indicadas para tratar déficit de atenção, essas drogas trabalham de modo a
prolongar a permanência de um neurotransmissor chamado dopamina em uma região
do cérebro conhecida como fenda sináptica: “Acreditase que as pessoas que
sofrem de déficit de atenção têm problemas na produção desse neurotransmissor”,
explicou o professor Mario Louzã, coordenador do Projeto de Déficit de Atenção
e Hiperatividade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.
Prolongar a permanência da dopamina no cérebro foi a forma
encontrada pela ciência de compensar falhas de produção nos indivíduos que
apresentam esse transtorno. A substância estabelece conexões com receptores nos
neurônios e, em quantidades adequadas, sinaliza ao cérebro que é hora de
prestar atenção a um estímulo externo. No caso de pessoas saudáveis, de pouco
adianta aumentar, em níveis acima do normal, a quantidade de dopamina
disponível: “A quantidade de receptores nos neurônios é limitada”. Sem
receptores aos quais se conectar, a dopamina excedente não tem utilidade: “O
ganho na atenção, se ocorre, é marginal”, garantiu Louzã.
Os efeitos colaterais, por outro lado, podem ser
acentuados. Ritalina e Venvanse são consideradas drogas seguras. Mas, como toda
droga, têm efeitos adversos e contraindicações. Quem as usa sem prescrição
médica costuma relatar episódios de ansiedade e taquicardia. No caso da
modafinila, segundo a equipe da Universidade da Califórnia, os relatos de
efeitos adversos são mais raros.
Embora os fóruns de internet sejam abundantes em relatos de
pessoas que dizem ter se beneficiado com o uso de nootrópicos, há também
aqueles casos em que as substâncias não tiveram efeito algum. Foi assim com o
paulistano Marcelo Toledo, diretor de engenharia do Nubank. Bem-humorado e
comunicativo, Toledo dá palestras pelo Brasil em que conta os prazeres e
dissabores de ocupar posições-chave em startups. Há 18 anos ele trabalha nesse
universo, de competição acirrada e mudanças rápidas. Disse que se interessou
pelos nootrópicos por simples curiosidade: “Eu costumava ser atleta, nadava. E,
como nadador, pesquisava sempre qual a melhor braçada, qual a melhor maneira de
me movimentar dentro da água”, contou. “Com os nootrópicos, queria descobrir
formas de ter um desempenho melhor como empreendedor.”
Sua inspiração nessa busca foi David Asprey, o americano
criador do bulletproof coffee: “Eu experimentei a modafinila, os racetams e
todas as smart drugs vendidas livremente pela internet”. O resultado foi
desapontador. “Não senti sequer efeitos colaterais.”
Toledo, por fim, se tornou um crítico das smart drugs. E da
cultura de trabalho excessivo que torna essas substâncias atraentes: “Vejo
empreendedores contando como trabalham 18 horas por dia para fazer crescer sua
empresa. Trabalhar com afinco é importante. Mas é importante respeitar os
limites do corpo”, disse, durante uma conversa rápida por telefone, entre
compromissos profissionais. “Não adianta dormir pouco e depois tomar uma pílula
para ficar acordado.” Hoje, ele substitui os nootrópicos por idas frequentes à
academia: “A ideia de que uma pílula pode melhorar sua performance é muito
tentadora”, refletiu. “Mas não adianta. Não existe fórmula mágica.”