Clipping - Consulta no Rio demora até 681 dias
O Globo / Rio
29/04/2018
Pacientes enfrentam via-crúcis nas redes públicas por exames e cirurgias
A Região Metropolitana do Rio tem 230 mil pessoas à espera
de consultas, exames ou cirurgias de baixa complexidade, segundo dados
oficiais. A maior parte está na capital: 214 mil, alta de 60% desde o fim de
2016. Uma consulta oftalmológica pode demorar 681 dias.
“Aguardo há cinco anos para extrair uma pedra da vesícula.
Fiz pré-operatórios duas vezes, mas eles perderam a validade” André da Silva
Castilho Paciente da rede municipal
Moradora de Mesquita, a faxineira Catarina da Silva, de 59
anos, usa as redes sociais para pedir doações e ajuda financeira para tratar um
câncer, diagnosticado em 2013, que começou no fígado e chegou a outros órgãos.
A luta contra uma doença grave ganhou contornos ainda mais dramáticos porque
ela não conseguia marcar exames e consultas na rede pública de saúde. Depois de
um ano, amigos pagaram para que ela fizesse uma eletroneuromiografia para
avaliar a origem de fortes dores pelo corpo. Apos alguns meses, ela recorreu à
Defensoria Pública Federal para tentar, ao menos, ser vista por um
especialista. Agora, é atendida numa clínica particular da Baixada. Não
bastassem seus problemas, Catarina teve que reunir forças para cuidar da filha,
Josiane, que, em fevereiro de 2017, teve um AVC hemorrágico e desde então não
recobrou a consciência. Mais uma vez, ela se viu às voltas com as agruras para
conseguir atendimento médico no Rio.
Há três meses, os exames que ela precisava foram feitos.
Mas, até agora, não conseguimos um neurologista para avaliar o quadro e indicar
o tratamento ideal. Vivemos com dificuldades. Ela me deu um neto e duas netas.
Foi preciso que o menino, agora com 18 anos, fosse morar com o pai, porque não
tenho condições financeiras para manter todos — disse Catarina.
—
EM MARÇO, FILA CRESCEU 59,7%
Mãe e filha estão longe de serem exceções. Dos exames mais
básicos aos serviços de saúde mais complexos, as filas se multiplicam. Na
Região Metropolitana do Rio, 228 mil pacientes — dos quais 214 mil apenas na
capital — estão cadastrados no chamado Sistema de Centrais de Regulação
(Sisreg) à espera de consultas, exames e cirurgias de baixa complexidade. Os
dados indicam que, na capital, houve em março um crescimento de 59,7% do número
de inscritos na fila, em comparação com dezembro de 2016, quando 134 mil
pessoas aguardavam pelos procedimentos. No extremo dessa fila virtual, o tempo
de espera por uma simples consulta oftalmológica pode chegar a 681 dias, quase
dois anos.
Em média, na cidade do Rio, o paciente da rede pública leva
mais de três meses para ser avaliado (99 dias) e 34 dias para realizar exames,
que podem, ou não, apontar a necessidade de cirurgias. Se uma intervenção for
indicada, será preciso voltar à fila para agendá-la. As estatísticas são da
própria Secretaria de Saúde da prefeitura, que administra o Sisreg.
Enquanto as filas aumentam, a oferta de vagas para
pacientes cai, puxada pelas unidades da prefeitura. Um estudo do Fórum de
Saúde, com base em dados oficiais do próprio município, mostra uma redução na
quantidade de procedimentos entre fevereiro de 2017 e o mesmo mês deste ano. O
total de ultrassonografias, por exemplo, caiu de 21.170 para 13.667, ou 35,4% a
menos. O número de cirurgias foi reduzido em 49,8%: de 47.214 para 23.717.
Detalhe: os dados incluem as operações de emergência. Outro indicador preocupante
revela que, em março, a rede municipal fez menos um milhão de procedimentos em
relação a março de 2017.
— Em 2017, o Hospital Ronaldo Gazolla (Acari) cortou 150
pessoas de uma equipe de 1.300. Já o Hospital da Piedade fechou 45 leitos
(30%). São apenas dois exemplos. Os cortes de verba também obrigaram as
clínicas da família a reduzir os procedimentos. Isso se reflete nas
estatísticas — diz o médico Carlos Vasconcellos, integrante do Fórum de Saúde.
Entre as poucas exceções na queda de produtividade estão as
cirurgias de Desamparo. Enquanto luta na Justiça para tratar um câncer,
Catarina da Silva cuida da filha Josiane, que teve AVC: família desassistida
catarata. Os indicadores, porém, estão bem abaixo da meta anunciada pelo
governo, de fazer 3.104 intervenções por mês. Embora tenham sido eleitas
prioridade, aumentaram de 22 para 117, comparando-se março do ano passado e
deste ano. Ainda é muito pouco.
Os recursos estão minguando, o que indica que o cenário é
desolador.
— Em 2017, a prefeitura deixou de aplicar R$ 400 milhões do
orçamento da saúde (R$ 5,4 bilhões). Esse quadro pode piorar por falta de
recursos. Este ano, R$ 600 milhões da verba já foram bloqueados. Além disso, há
problemas em outras redes. Nas unidades federais, foram fechados leitos, e especialistas
não têm sido repostos — disse o vereador Paulo Pinheiro (PSOL), da Comissão de
Saúde da Câmara.
Segundo dados oficiais, apenas nas redes federal e
municipal, a carência de profissionais chega a 5.149. Nos seis hospitais da
rede federal, faltam pelo menos 3.592 médicos, enfermeiros, além de outros
profissionais. Entre os que estão em dificuldades, há unidades de referência
como os hospitais de Bonsucesso, de Ipanema e Cardoso Fontes. O Ministério da
Saúde planeja completar os quadros recrutando pessoal em contratos temporários
(por até dois anos), mas não informou quando isso acontecerá.
A falta de pessoal em unidades de referência é um dos
motivos para o aumento do tempo de espera no Sistema Estadual de Regulação
(SER), que gerencia as vagas de média e alta complexidade. Uma das preocupações
hoje é com a área de oncologia. Em um ano, o tempo de espera por um exame de
mama, por exemplo, passou de dez para 42 dias. Há ainda outros fatores. Em
setembro de 2017, depois que uma clínica particular deixou de atender pacientes
pelo SUS, o sistema perdeu 195 vagas por mês para exames e tratamentos de
câncer.
Na prefeitura, a carência é de 1.557 profissionais na rede
básica e nas oito policlínicas que oferecem exames de especialidades como
ginecologia, cardiologia, dermatologia, endocrinologia e ortopedia. Restrições
orçamentárias são o principal empecilho para que esses quadros sejam
preenchidos. Desde abril de 2017, a prefeitura ultrapassou o limite de alerta
para gastos com pessoal pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o que
dificulta a realização de concursos. Enquanto isso, os pacientes sofrem.
Aguardo há cinco anos para extrair uma pedra da vesícula.
No período, fiz exames pré-operatórios duas vezes, mas eles perderam a
validade. Essa espera é incompreensível. Sofro muitas dores, principalmente à
noite. Quase não durmo — diz o serralheiro André da Silva Castilho, de 41 anos.
—
CIRURGIA DE CRIANÇAS PARA NA JUSTIÇA
A desempregada Rosângela Marques Fernandes, de 52 anos, é
outra que convive com dores frequentes, também causadas pela vesícula, que não
pôde operar até hoje. Indignada, ela diz que a espera já chega a quatro meses:
— É um desrespeito. Quando estou em crise, sinto muita dor
perto das costelas. Nem consigo ficar de pé.
Com a crise econômica, a classe média passou a pressionar
as redes públicas. A bioquímica Rafaela Kowalski, de 34 anos, moradora da Ilha
do Governador, é uma das muitas pessoas que não podem mais arcar com as
despesas de um plano de saúde particular.
— Há meses tento agendar um exame de monitoramento de
hipertensão. Estou desempregada e não tenho condições de pagar na rede
particular — afirma Rafaela.
Em nota, a SMS confirmou que o contingenciamento afetou os
serviços da rede. Mas alegou que, proporcionalmente, o ano de 2017 foi o que
mais investiu recursos (25,71% do orçamento) enquanto a legislação exige que
sejam aplicados 15%. Sobre a limitação de verba, a secretaria informou que
gastou R$ 4,9 bilhões dos R$ 5 bilhões disponíveis no ano passado. “O valor não
executado (R$ 100 milhões) refere-se a recursos do SUS repassados após
fechamento do orçamento que serão aplicados em 2018”, disse. Sobre a queda de
produtividade apontada pelo Fórum de Saúde, argumentou que os dados estão
sujeitos à revisão. Segundo a prefeitura, as unidades têm 60 dias, após o
fechamento do mês, para rever os dados inciais, quando então a análise pode ser
feita.
A subsecretária de Regulação, Controle, Avaliação,
Contratualização e Auditoria da SMS, Cláudia da Silva Lunardi, nega que
questões financeiras estejam alongando as filas. Segundo ela, no ano passado, a
prefeitura reviu as regras que disciplinam a fila para fazê-las andar. Ela, no
entanto, reconhece que há gargalos, principalmente, por carência de pessoal nas
policlínicas municipais.
— A rede pública não funciona de forma realmente integrada.
A consequência é o agravamento do quadro clínico dos pacientes enquanto as
filas crescem — critica o presidente do Cremerj,
Nelson Nahoun.
Muitas vezes, os casos vão para o balcão da Justiça. Na
semana passada, a Defensoria Pública Federal entrou com uma ação exigindo um
plano para a redução das filas de cirurgias cardíacas infantis em 60 dias, da
União e do governo estadual. Em 2016, o Cremerj
constatou que 200 crianças esperavam atendimento no
Instituto Nacional de Cardiologia Laranjeiras, que tinha seis de 24 leitos
fechados. Já o Instituto Estadual de Cardiologia Aluísio de Castro tinha
insuficiência de pessoal em 12 de 15 especialidades.