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Clipping - Violência faz carioca adoecer

O Globo / Rio

15/04/2018


Violência causa sintomas físicos e psicológicos que afetam vítimas e moradores da cidade

 

O soldado Marcos Vinícius Azeredo foi assassinado ao ser reconhecido como policial militar por assaltantes que o atacaram quando ia para a casa de sua mãe, Leonora Azeredo, em São Gonçalo. Dez dias depois, em 16 de janeiro deste ano, a violência impôs um novo sofrimento à família. Leonora teve um AVC e, após um mês de internação, morreu, segundo parentes, de “tristeza”. O pai do PM foi morar com outro filho porque, sozinho, não suportaria a dor. O tiro que matou Marcos Vinícius também atingiu todos que conviviam com ele. Em meio às estatísticas da criminalidade do estado, há muito sofrimento psicológico, além de doenças que surgem no rastro do medo e da falta de esperança.

Milhares de pessoas adoecidas pela violência lotam consultórios, clínicas e hospitais. Fora outras tantas que se fecham no silêncio e não buscam ajuda. Uma moradora de Botafogo de 51 anos, que prefere não se identificar, diz que demorou a reconhecer que estava doente. Depois do segundo assalto que sofreu no bairro, ela passou a se sentir perseguida. Um dia, não conseguiu sair da portaria de seu prédio. Mal via os amigos e faltava ao trabalho. Palpitações e tremores lhe causavam sobressaltos.

— Parecia que ia ter um ataque cardíaco. Notícias sobre crimes me perturbavam. Comia pouco. Quando fui tratar uma anemia, o médico observou que havia algo a mais e me orientou a procurar atendimento psicológico — conta ela.

É grande a lista de transtornos que podem acometer vítimas ou testemunhas de casos de violência, afirma Herika Cristina da Silva, pesquisadora do Instituto de Psiquiatria (Ipub) da UFRJ . Evitar ir a lugares que lembrem o trauma, isolar-se, ficar mais irritado ou triste são os menos graves. Nos quadros mais agudos, surgem transtornos de ansiedade, síndrome do pânico, depressão e Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT), que são mais difíceis de diagnosticar, pois quem sofre evita falar sobre o assunto.

A tensão constante deflagra sintomas como dores musculares ou na coluna. A ansiedade também causa falta de ar, tremores, enjoo e diarreia. Ao mesmo tempo, o aumento da frequência cardíaca pode fazer com que as pessoas fiquem mais propensas a doenças cardíacas.

— Somos integrados, o que afeta a cabeça atinge o corpo. Quando o medo se torna crônico, outros problemas aparecem — observa Herika.

Quem se acostumou com a violência não está livre de sucumbir a ela. Criado no Complexo da Maré, X. testemunha desde a infância disputas do tráfico e abusos da polícia. Mas, quatro meses atrás, no dia de seu aniversário de 30 anos, foi tomado por um pensamento que o levou a sessões de terapia e à psiquiatria. Ele se deu conta do grande número de amigos que foram assassinados.

Eu me vi um sobrevivente dessa maluquice. Entrei na paranoia de que morreria a qualquer momento. Virei refém do medo, tive crises de pânico. Fiquei paralisado na estação de trem de Ramos — lembra ele, que, recentemente, se viu no meio de um tiroteio na passarela que liga a Uerj ao metrô, no Maracanã.

     

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No Complexo do Alemão, o Instituto Movimento & Vida oferece atendimento gratuito, com fisioterapeutas voluntários, à comunidade. A idealizadora do projeto, Mônica Cirne — cujo marido foi morto num assalto — perdeu as contas de quantos pacientes recebeu com diagnósticos imprecisos, que tinham dores ampliadas pelo medo.

— Em períodos mais violentos, a procura aumenta. Acredito que todas as comunidades estão doentes. Não vejo o baleado, mas acompanho de perto as tensões, a ansiedade e as doenças neurológicas sem atendimento na rede pública — diz a fisioterapeuta.

Com 16 anos, Hemerson Catarino é um dos pacientes do instituto. Morador de uma das áreas mais perigosas do Alemão, ele aprendeu, desde pequeno, que devia correr para o quarto dos fundos ao primeiro barulho de tiroteio. Aos 14 anos, teve um AVC — a causa nunca foi identificada.

As consequências desse cotidiano violento são objetos de estudo da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp, da Fiocruz), onde funciona o Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves). Pesquisadora do núcleo, Joviana Quintes Avanci ressalta que, em áreas conflagradas, pessoas podem ser levadas à morte por banalizarem sintomas de doenças decorrentes de traumas:

— A violência é uma situação limite, uma ameaça. A vivência de um momento muito grave pode provocar infartos e derrames, principalmente em pessoas com alguma predisposição.

No Café e Bar Pinto, na Tijuca, o tiroteio entre PMs e criminosos que matou o garçom Samuel Ferreira Coelho, de 24 anos, às vésperas do último carnaval, continua vivo na memória de funcionários.

— Qualquer barulho na rua, sobretudo de sirenes, deixa a gente em alerta — diz o gerente do bar, Francisco Mendes.

No Humaitá, em março, as câmeras do restaurante Combinado Carioca flagraram um assalto a clientes. No dia seguinte, funcionários não foram trabalhar, por medo. Um pediu demissão.

— Ele andava assustado. Frequentemente comentava que via pessoas estranhas — lembra a dona do restaurante, Christina Lobo.

Também no Claves, Daniella Harth estuda as reações de famílias de pessoas assassinadas. São chamadas por especialistas de “sobreviventes do homicídio” ou “covítimas”, e podem ter de hipertensão a distúrbios da tireoide.

Percebemos um impacto psicológico muito intenso e um processo de adoecimento após os homicídios. São tipos de sofrimento às vezes difusos, sem diagnóstico. Não há dúvidas de que esse é um grande desafio para os dias atuais. A população nem tem tempo para se recuperar de um trauma e logo depois vivencia outro — afirma Daniella.

     

 

MARINA SÁ ‘O carioca está no limite, pronto para uma guerra’

Terapeuta afirma que rotina conflagrada esgarça o tecido social, rouba o sossego e, por consequência, reduz espaços de convivência

 

Com o aumento da violência, qual é o estado da população do Rio hoje?

Eu diria que estamos à beira de um colapso. As pessoas que procuram ajuda têm chegado mais sofridas. Antes, o imaginário sobre a violência era maior. Agora, relatam vivências mais concretas.

 

Qual o impacto que sofre alguém que experimenta ou testemunha uma situação de violência?

É um desmonte que deixa a pessoa fragmentada. Muitas vezes, a realidade inteira fica impregnada daquela vivência. Durante um tempo, ela só fala naquilo. É um passado vivificado. E o sistema nervoso fica em alerta, como se fosse viver tudo de novo. Essa ameaça gera estresse. Há aqueles que sequer vivem a violência, mas os relatos no noticiário e nas redes sociais os deixam em pânico, uma das doenças que mais nos assolam atualmente.

Aparecem muitas pessoas relatando dores físicas também?

Às vezes, a alma, o psicoló- gico não é escutado. O efeito dessas tensões não ouvidas vai se acumulando. A pessoa surta, não consegue levantar da cama. E há casos em que o corpo avisa, adoece para mostrar que há algo errado. Há quem acredite que terá um infarto e vai para o hospital. O médico diz que é emocional, e o paciente volta para casa. Atendo em Botafogo, onde as pessoas têm algum tipo de acesso, porém as desigualdades são imensas. É muito pequena a rede para atender quem tem menos recursos.

 

Como o cotidiano da cidade é afetado?

 O carioca está no limite, pronto para uma guerra, sente-se acuado. E, às vezes, isso explode em casos de violência que tomam o cotidiano, como xingar alguém no trânsito. Ao mesmo tempo, os nossos espaços de convivência, como as praças, estão sem vida ou dominadas pela violência. As múltiplas atividades que as pessoas devem fazer para respirar são restringidas pela violência. O tecido social é esgarçado. Como seres sociais, precisamos recuperar esses espaços e cuidados interpessoais. A cidade tem uma vocação alegre, que vem sendo violentada. Precisamos mudar isso.