Aviso de Privacidade Esse site usa cookies para melhorar sua experiência de navegação. A ferramenta Google Analytics é utilizada para coletar informações estatísticas sobre visitantes, e pode compartilhar estas informações com terceiros. Ao continuar a utilizar nosso website, você concorda com nossa política de uso e privacidade. Estou de Acordo

Clipping - Drama invisível nas cadeias

O Globo / Sociedade

30/03/2018


Incidência de tuberculose entre presidiários é 30 vezes maior do que na população geral

Em 20 de dezembro de 2016, Jonathan de Souza Conceição deixou o Instituto Penal Vicente Piragibe, em Bangu, Zona Oeste do Rio, tossindo sangue e mal sustentando de pé o corpo franzino de 40 kg. Ele havia passado sete anos preso, e, ao ganhar liberdade, foi levado a um hospital por sua mãe, Márcia Helena. Só lá foi diagnosticado com tuberculose. A mãe chegou a ouvir de um médico que o Estado havia matado o seu filho. Jonathan já estava sem um pulmão e apenas com metade do outro funcionando. Ele morreu aos 26 anos, menos de um mês após ser solto.

— Como acha que eu estou hoje, como mãe? Até hoje o Estado não me deu uma resposta. E muitos garotos sofrem lá dentro com condições deploráveis de saúde, mas em geral as mães têm medo (de denunciar) — conta ela, que agora luta contra a depressão. — Meu filho entrou na prisão com mais de 80 kg e saiu com 40 kg, sem andar, fraco. Agora que já o levaram, não tenho medo de mais nada.

Nos meses que antecederam a soltura de Jonathan, Márcia diz ter feito uma peregrinação à Vara de Execuções Penais (VEP) e à Defensoria Pública, tendo também procurado por diversas vezes o diretor e assistentes sociais do presídio. Ela percebia a fraqueza extrema do filho toda vez que o visitava. Depois de sua mobilização, Jonathan chegou a ser internado em uma unidade de saúde da penitenciária, mas, segundo Márcia Helena, ficou lá só por três dias, sem isolamento e apenas tomando soro.

Como alguém vai ser curado de tuberculose assim? Não aceito tê-lo perdido — desabafa ela. — Fora isso, a cela era muito lotada e tinha muito rato.

 

‘FÁBRICAS DE TUBERCULOSE’

O caso de Jonathan ilustra por que alguns especialistas chamam os presídios brasileiros de “fábricas de tuberculose”. Segundo dados do Ministério da Saúde e pesquisas da Fiocruz, enquanto a média de registros dessa doença na população total do país é de 32 a cada 100 mil habitantes, a média na população carcerária é de 932 infectados por 100 mil. Isso significa que, dentro das prisões, há uma incidência praticamente 30 vezes maior da doença.

No Rio, a situação é ainda pior. A média de casos chega a quase 2 mil a cada 100 mil presos, o que torna o estado o primeiro em incidência de tuberculose na população privada de liberdade. De acordo com a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (Seap-RJ), 1.800 internos estão atualmente em tratamento no sistema prisional do Rio.

Coordenador do Observatório da Tuberculose, vinculado à ENSP/Fiocruz, Carlos Basilia não mede palavras para descrever o cenário:

— É uma política de extermínio, do ponto de vista dos direitos humanos. Os presídios brasileiros são fábricas de tuberculose. Faltam condições salubres para a vida ali. É como uma punição em dobro.

No mês em que é lembrado o Dia Mundial de Combate à Tuberculose, no último sábado, um levantamento feito pelo GLOBO com as secretarias de Administração Penitenciária do Rio, Espírito Santo, Minas Gerais e Pernambuco mostra que o número de casos só aumenta, ano a ano. No Rio, a doença atingiu 1,7% dos presos em 2015; 2%, em 2016; e 2,6%, no ano passado. Em terras capixabas, esse índice passou de 0,26% em 2016 para 0,32% em 2017. Em Minas, de 0,28% para 0,33% no mesmo período.

Em Pernambuco, os números da tuberculose nas unidades prisionais já representam 10% de todos os casos notificados no estado, com uma taxa incidência de 1.892 para cada 100 mil presos, enquanto na população geral esse índice foi de 49,2 por 100 mil habitantes em 2016.

Os entraves vão desde o diagnóstico lento até o tratamento, que é de difícil adesão por durar ao menos seis meses, com quatro comprimidos diários. A estrutura dos presídios não colabora: o ar circula pouco; a luz do Sol quase não entra; as celas abrigam mais presos do que deveriam; e a alimentação, em geral ruim, enfraquece a imunidade. O infectologista Rafael Sacramento trabalha no sistema prisional de Pernambuco há dois anos, e um dos aspectos que mais o alarmam é como a arquitetura e as condições de higiene de grande parte das penitenciárias são “perfeitas” para que a tuberculose se espalhe.

— O ideal seria que as janelas fossem altas. Assim, o ar quente sairia por ali e o ar frio entraria pelos corredores, que deveriam ter respiradouros. Da forma como é hoje, formam-se bolsões de ar quente, e esse ar não circula — analisa. — A luz solar, que mata a bactéria causadora da doença, entra pouquíssimo. As celas são estufas para proliferação da doença.

É consenso entre médicos que, de forma geral, o grande obstáculo para o controle da tuberculose não está na falta de remédios nos presídios, mas na ausência de uma triagem de qualidade assim que o preso chega, e de uma triagem periódi- ca, para que os suspeitos de estarem infectados sejam logo separados. Segundo Sacramento, para um diagnóstico eficaz nessas circunstâncias é preciso ter um exame barato, fácil de ser aplicado, sensível e de simples conservação — o que ainda não está disponível.

— A tuberculose é naturalmente subdiagnosticada. Muitas pessoas chegam às prisões todos os dias e só se descobrem a doença quando está “escrita na testa”, com sintomas claros — diz.

Além dos presos, os visitantes, funcionários do presídio e a comunidade do entorno estão expostos ao risco.

É um problema invisível, porque atinge a camada pobre da população. E o alcance do problema só cresce. Em 1990, havia 90 mil pessoas presas no país. Hoje, temos 600 mil, muito por conta de uma política que continua voltada para o encarceramento e não para questões sociais. Nenhum médico pode vislumbrar, para os próximos cinco ou dez anos, uma melhora nesse cenário.

 

INTERRUPÇÕES NO TRATAMENTO

A alta mobilidade dos presos entre as unidades é outro fator que agrava a situação. No Rio, por exemplo, 42% dos detentos ainda não foram julgados. Até que isso aconteça, eles são frequentemente mudados de presídio, o que prejudica a continuidade do tratamento. Quando a ingestão dos remédios é interrompida, é alto o risco de o paciente desenvolver uma nova forma de tuberculose, desta vez resistente às principais drogas. E, se não há problemas na distribuição de remédios contra a doença para os presídios, o mesmo não pode ser dito em relação aos medicamentos próprios para tratar tuberculose multirresistente.

— Esse tipo de remédio, para quem já desenvolveu resistência, é muito caro. Nesses casos, faltam medicamentos — diz a pneumologista e pesquisadora da ENSP/Fiocruz Margareth Dalcolmo. — Não temos uma alta taxa de casos de tuberculose multirresistente, mas esse número vem pouco a pouco crescendo.

Não há comprovação de que tenha sido esse o caso de Jonathan de Souza Conceição, mas a Seap-RJ informou em nota que o rapaz manifestou sintomas da doença por duas vezes: em 2014, quando, segundo a secretaria, ele fez “tratamento completo” no sanatório penal do Complexo Penitenciário de Gericinó, e em 2016, quando “o tratamento foi reiniciado” e o rapaz teria tido “alta cura”.

A pesquisadora da Fiocruz ressalta que muitas das condições frequentes entre presos os tornam ainda mais vulneráveis, como HIV e diabetes. Estimase que metade das mortes por tuberculose se dê em pessoas com o vírus causador da Aids. E diabéticos têm seis vezes mais risco de contrair a doença.

— É um esquema mórbido e perverso. Se um doente entra numa cela de 15 m² com 40 pessoas e fica ali um mês, ele contaminará ao menos outros cinco — diz.

Helio Torres Filho, integrante da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e diretor médico do laboratório Richet, é enfático: a grande chave é diagnosticar cedo para começar a tratar logo:

— Há testes que dão o diagnóstico em no máximo três horas, já dizendo se é ou não uma bactéria resistente. E, em torno de 15 dias depois de iniciar o tratamento, não se transmite mais a doença.

“Faltam condições salubres para a vida nas prisões. É punição em dobro” Carlos Basilia Coordenador do Observatório da Tuberculose, vinculado à ENSP/Fiocruz