Clipping - Uma alternativa nacional contra a leucemia
O Globo / Sociedade
04/03/2018
Cientistas brasileiros desenvolvem molécula que pode substituir remédio importado feito com bactérias
Cientistas brasileiros acabam de desenvolver uma nova molécula que pode se tornar uma importante alternativa no tratamento da leucemia linfoblástica aguda (LLA), uma forma grave de câncer no sangue que atinge principalmente crianças e jovens e pode ser fatal em poucos meses — se não for atacada logo. Conhecida como asparaginase, a substância é usada como coadjuvante na terapia da LLA desde os anos 1970. Mas, enquanto a medicação atual é extraída de bactérias, a molécula criada pelos pesquisadores do Laboratório de Proteômica e Engenharia de Proteínas do Instituto Carlos Chagas, da Fiocruz Paraná, é similar à produzida pelas próprias células humanas, o que eles esperam que reduza em muito os riscos de efeitos colaterais.
BUSCA LEVOU QUATRO ANOS
Proteína que funciona como uma enzima, isto é, catalisadora
de reações químicas essenciais para a vida, a asparaginase atua contra a
leucemia ao degradar o aminoácido asparagina, reduzindo sua concentração no
sangue. Acontece que, diferentemente das células saudáveis, as cancerosas não
conseguem produzir esse aminoácido sozinhas e, privadas dele circulando no
organismo, acabam morrendo.
— As células humanas produzem a asparaginase, mas essa
proteína, quando isolada, não tem atividade igual à que tem no interior das
células para utilização como medicamento — explica Tatiana Brasil, uma das
pesquisadoras responsáveis pelo desenvolvimento da nova molécula, com os
colegas Stephanie Bath de Morais e Nilson Zanchin. — A enzima obtida a partir
de bactérias, embora efetiva no tratamento, provoca uma reação potente do
sistema imunológico, causando diversos efeitos colaterais no paciente. Assim,
buscamos uma forma de asparaginase que fosse mais parecida com a que o próprio
corpo humano produz. A ideia é diminuir os efeitos adversos para que o paciente
não tenha que interromper o tratamento, arriscando uma piora em seu quadro
clínico.
Tatiana conta que a busca pela nova molécula começou há
cerca de quatro anos, em que foram experimentadas diversas modificações na
estrutura da asparaginase humana para que adquirisse potencial ação terapêutica
contra a LLA. Identificadas as alterações necessárias na enzima, os cientistas
partiram para o teste da nova molécula na bancada do laboratório, observando
que ela fazia espontaneamente a chamada clivagem — uma espécie de “corte” ou
“abertura” em sua estrutura — para reagir com a asparagina, além de adicioná-la
em uma solução do aminoácido e verificar uma redução na sua concentração,
indicando que ele estava sendo efetivamente degradado.
Com pedido de patente da nova molécula já feito junto ao
Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), os pesquisadores da
Fiocruz Paraná agora estudam métodos para produzi-la em maior escala para dar
início aos ensaios pré-clínicos e às experiências com animais para avaliar sua
eficácia, tolerância e segurança antes dos testes desses mesmos parâmetros com
seres humanos. Tudo isso, no entanto, ainda vai demandar tempo, já que, como
lembra Tatiana, um novo medicamento leva cerca de dez anos para passar por todo
esse processo e chegar ao mercado.
— Aqui na Fiocruz Paraná temos condições suficientes para
realizar todos esses estudos pré-clínicos e com animais, mas para os ensaios
humanos vamos precisar de parceiros com experiência e escala, que podem ser da
própria Fiocruz nacional, como o laboratório de Biomanguinhos, ou da iniciativa
privada — diz Tatiana. — São muitas etapas para as quais ainda não sabemos a
resposta, mas, se tudo der certo, um novo medicamento com nossa molécula pode
chegar ao mercado em cerca de dez anos.
Além da esperada diminuição dos efeitos colaterais e melhor
tolerância dos pacientes, a asparaginase humana modificada criada pelos
cientistas da Fiocruz Paraná pode ajudar a evitar problemas no abastecimento do
medicamento, como o enfrentado pelo Brasil nos últimos anos. Em 2013, a então
única fornecedora da substância no mercado nacional, numa formulação chamada
L-asparaginase, pediu o cancelamento de seu registro junto à Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Com isso, os hospitais brasileiros ficaram impedidos de
comprar diretamente o remédio para depois serem ressarcidos pelo Ministério da
Saúde. Esse era o protocolo adotado pela pasta para atender os cerca de quatro
mil pacientes que dependem desse medicamento nos serviços de oncologia do
Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, desde então, o ministério foi obrigado a
fazer uma série de aquisições emergenciais da asparaginase no exterior.
HOSPITAIS FARÃO AQUISIÇÃO
Segundo a pasta, porém, a última dessas compras está
prevista para acontecer na primeira metade deste ano e apenas como uma garantia
para assegurar o abastecimento de hospitais que ainda enfrentem alguma
dificuldade em sua obtenção. Em 2017, foi registrado na Anvisa um outro
medicamento com formulação semelhante, chamada PEG-asparaginase, para venda no
mercado nacional. O ministério decidiu devolver aos hospitais a responsabilidade
por sua aquisição, pela qual também passarão a ser ressarcidos de acordo com a
efetiva utilização, e não mais segundo uma tabela média, como era feito antes
de 2013.
Nossa eventual produção de asparaginase humana modificada
não deverá competir diretamente com esses medicamentos de origem bacteriana,
mas com a produção nacional dessa molécula inovadora. Teríamos uma alternativa
com a possibilidade de melhorar o tratamento, baratear o custo e reduzir a
dependência dessas importações — conclui Tatiana.
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