Clipping - O médico ‘benfeitor’ de Benfica
O Globo / Opinião
03/02/2018
Nelson Nahon é presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj)
Não é novidade que o Rio de Janeiro vive uma crise sem
precedentes na Saúde. Para a população carioca, depender dos hospitais públicos
gera um estresse tão grande que isso, por si só, já é capaz de abalar o
bem-estar.
Enquanto os médicos sofrem tentando trabalhar em unidades
sucateadas, e o povo padece em busca de cuidados básicos, na Cadeia Pública de
Benfica, na Zona Norte do Rio, conseguir uma consulta não parece ser um
problema. O mesmo Sérgio Côrtes que desviou cerca de R$ 300 milhões da Saúde do
Rio, segundo estimativas do Ministério Público Federal (MPF), quando foi
secretário estadual da pasta na gestão Sérgio Cabral, tomou a assistência
médica como sua maior preocupação agora que está atrás das grades.
Um interesse, no mínimo, surpreendente pela questão. Preso
desde abril de 2017 acusado de corrupção, o ex-gestor afirma que já fez oito
mil atendimentos no cárcere desde junho passado. Por mais que Côrtes tenha
recebido autorização da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) para
exercer seu ofício de médico no presídio e esteja beneficiando os detentos,
resta a dúvida se o trabalho realmente reflete um desejo de melhorar a
qualidade de vida de seus pares, como manda a ética profissional, ou visa
apenas à redução da pena.
À frente da Secretaria de Estado de Saúde, Sérgio Côrtes
teve uma atuação polêmica. Implantou a terceirização da mão de obra na Saúde,
um modelo altamente questionado. Foi processado por improbidade administrativa
e investigado por peculato. O Hospital Regional Drª Zilda Arns, em Volta
Redonda, que começou a ser erguido em sua administração, está pronto há dois
anos e ainda não foi inaugurado.
Há anos, o Rio de Janeiro é vítima de gestores como Côrtes.
Entre 2015 e 2017, o estado deixou de repassar mais de R$ 2 bilhões para a
Saúde, já que a norma que determina a aplicação de 12% da receita no setor não
vem sendo cumprida. O resultado disso é a redução de serviços, o desabastecimento
de insumos, a escassez de recursos humanos, o déficit de 150 leitos por dia em
CTIs e a queda da qualidade do atendimento à população nos hospitais. Por conta
de maus gestores, estamos perdendo vidas.
Enquanto Côrtes contabiliza suas oito mil consultas
realizadas na Cadeia Pública José Frederico Marques e no Instituto Penal Oscar
Stevenson, que ficam no mesmo endereço em Benfica, eu me pergunto quantas
pessoas não conseguiram assistência nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs),
criadas por ele, durante seu período como secretário. Enquanto meu colega de
profissão e, agora, detento cuida de internos com conjuntivite no presídio — e
sugere à Secretaria de Administração Penitenciária a transferência dos doentes
para outras unidades, além de orientar os encarcerados a adotarem medidas de
higiene para evitar o alastramento da infecção —, eu me questiono quantas
crianças não fizeram suas cirurgias cardíacas no Instituto Estadual de
Cardiologia Aloysio de Castro (Iecac) devido ao desvio de recursos. Como presidente
do Conselho Regional de Medicina do
Estado do Rio de Janeiro (Cremerj), eu me sinto indignado ao
ver que alguém que jurou servir ao povo como médico causou um prejuízo enorme a
milhões de cidadãos. E esse prejuízo não será pago nem com os R$ 13,5 milhões
devolvidos por Côrtes aos cofres do estado nem com o trabalho dele na prisão.
O mesmo Sérgio Côrtes que desviou cerca de R$ 300 milhões
da Saúde do Rio tomou a assistência médica como a maior preocupação agora que
está atrás das grades