Clipping - ‘Medicina de rua’ trata os sem-teto dos Estados Unidos
O Globo / Sociedade
27/11/2017
Projetos levam cuidados médicos a uma grande população desassistida no país
A enfermeira Laura LaCroix atendia a um de seus muito
pacientes sem-teto em uma loja da rede Dunkin’ Donuts no Centro da cidade
quando ele mencionou que um companheiro estava deitado em agonia em um bosque
próximo. “Você devia ver como ele está”, disse Pappy, como é conhecido. “Mas
não se preocupe. Eu botei ele em cima de uma lona, então, se ele morrer, você
pode só rolar ele num buraco”, completou.
LaCroix ligou para seu chefe, Brett Feldman, médico
assistente que lidera o programa de “medicina de rua” na Rede de Saúde Lehigh
Valley. Ele saiu correndo de uma reunião e, juntos, entraram no bosque. Eles
encontraram Jeff Gibson em posição fetal, vomitando bile verde e gritando de
dor por ter sido socado no estômago por outro homem dias antes. Feldman disse a
ele que teria de ir para o hospital. “Talvez amanhã”, disse Gibson. “Amanhã
você estará morto”, respondeu Feldman.
Meses depois, Gibson, de 43 anos, ainda vive no bosque, mas
desta vez exibe uma cicatriz de 15 centímetros — de um intestino perfurado e
peritonite — que evidencia a operação passada. Ele saúda Feldman efusivamente.
— Você é a única pessoa que poderia ter me levado para o
hospital — diz. — Você é a única pessoa em quem confio.
Pappy e Gibson são “dormidores brutos”, parte de um pequeno
exército de sem-teto do país que não pode, ou não quer, ficar em abrigos, e
vive ao ar livre. E LaCroix e Feldman são parte de um crescente esforço para
localizar e cuidar deles não importa onde estejam — seja sob pontes, em becos
ou beirais de portas.
— Acreditamos que todos importam — diz Feldman. — E que é
nosso dever sair e encontrá-los.
Na maior parte do tempo,
os integrantes da equipe fornecem cuidados básicos a pessoas que vivem em
dezenas de acampamentos ao Leste de Lehigh Valley, na Pensilvânia. Nas suas
andanças pelas ruas, aplicam pomadas com antibióticos em cortes, colocam talas
em luxações e tratam condições crônicas como hipertensão e diabetes. Mas eles
também ajudam as pessoas a se inscreverem no Medicaid (programa de saúde do
governo americano), darem entrada em benefícios do seguro social por invalidez
e procurarem moradia. Três a quatro vezes por mês, têm que lidar com indivíduos
que ameaçam se matar. E em muitos dias eles simplesmente ouvem os pacientes,
tentando aliviar a dor emocional tanto quanto a física.
A medicina de rua teve início nos EUA nos anos 1980 e 1990
pelas mãos dos ativistas de defesa dos sem-teto Jim O'Connell, em Boston, e Jim
Withers, em Pittsburgh. Mas foi só nos últimos cinco anos que ela de fato
“pegou”, com alguns poucos programas se tornando mais de 60 em todo país. Mesmo
com a chegada à “maturidade”, a medicina de rua enfrenta desafios. Novos
líderes estão menos interessados em cultivar uma imagem de caridade e mais em
estabelecer a abordagem como uma maneira legítima de levar cuidados com a saúde
não apenas para os sem-teto — cuja expectativa de vida é de cerca de 50 anos —,
mas também para outras populações desassistidas.
Seus defensores também pressionam por mais apoio financeiro
dos hospitais, que podem se beneficiar muito quando os semteto recebem cuidados
que os mantêm fora dos prontos-socorros. O programa de Feldman — que inclui a
equipe de rua, clínicas em oito abrigos e “sopões”, e um serviço de consultas
no hospital — reduziu fortemente as idas às emergências e internações entre sua
“clientela”. O resultado, para surpresa dos executivos da rede Lehigh Valley,
foi um ganho de US$ 3,7 milhões (cerca de R$ 12 milhões) no balanço do ano
fiscal de 2017.
Mas talvez o maior desafio que a medicina de rua enfrenta
seja fornecer mais serviços de saúde mental. Cerca de um terço dos sem-teto tem
graves distúrbios mentais, e dois terços desordens relacionadas ao abuso de
drogas. Longas filas de espera para avaliações psiquiátricas atrasam a
medicação necessária.
A psiquiatra Sheryl Fleisch trabalha neste problema. Em
2014, ela fundou o programa de psiquiatria de rua da Universidade Vanderbilt,
uma das poucas iniciativas do tipo no país. Toda quarta, Fleisch e médicos
residentes visitam acampamentos em Nashville, distribuindo camisas, cobertores
ou qualquer outra coisa que ajude a construir confiança. Então eles se separam
para conversar cara a cara com as pessoas esperando nos bancos dos parques, nos
pontos de ônibus e em restaurantes de fast-food, fornecendo receitas semanais
de medicamentos quando necessário. Fleisch diz que seus pacientes sem-teto
quase nunca faltam a uma “consulta”.
— Muitos foram expulsos de outros programas ou são ansiosos
demais para sessões regulares nos consultórios — diz. — Temos alguns pacientes
que levantam e sentam 15 vezes durante as consultas. Mas não desistimos deles.