Clipping - Obamacare na linha de tiro
Extra /
16/01/2017
Ligia
Bahia
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Inegavelmente, a inclusão de 20 milhões de americanos no
seguro-saúde foi um avanço. O presidente Trump vai revogar a legislação que
garante acesso a procedimentos preventivos e curativos, sem explicitar como irá
fazer para propiciar acesso a medicamentos e assistência médico-hospitalar
caros e continuados. Na semana passada, antes da posse do novo presidente, o
desmonte foi iniciado. Houve uma votação no Senado (vitória dos republicanos
por 51 a 48 votos) referente ao projeto orçamentário e definições de prazos que
ameaçam as coberturas existentes. Líderes republicanos afirmaram que as
eleições de 2016 lhes deram um mandato para rejeitar o Obamacare e aprovaram a
proposta de que as comissões do Congresso americano apresentem uma norma para
sua revogação ainda em janeiro de 2017.
Ainda que a data seja um marcador de posição, os movimentos
dos republicanos têm sido velozes e sincronizados. Trump, por meio de mensagem
divulgada pelo Twitter, parabenizou o Senado e declarou em recente entrevista à
imprensa que irá divulgar sua proposta tão logo Tom Price, parlamentar
conservador da Georgia, acirrado opositor do Obamacare, seja nomeado para o
cargo de secretário dos Serviços de Saúde (responsável pela execução das
políticas federais).
A escolha de um político contra os direitos à saúde, gays e
descriminalização do aborto para conduzir a política de saúde da nova gestão
sugere que o ataque ao Obamacare durante a campanha não era fanfarronice.
Segundo o senador Roger Wicker, republicano do Mississippi, o desmantelamento
do Obamacare mostrará ao povo americano que as eleições têm consequências.
Entretanto, as diretrizes e as propostas de Trump e sua equipe não foram
explicitadas. E a ideia abstrata de deixar que o mercado resolva os problemas
de saúde parece insuficiente para responder a necessidades de doentes graves e
idosos. A revisão das atuais políticas públicas de saúde, sem colocar nada no
lugar, poderá desagradar até aos mais fervorosos partidários de Trump. Nas
pesquisas de opinião, os gastos dos indivíduos e famílias americanas com saúde
têm sido apontados como a principal preocupação da população.
Nos EUA, até os anos 1990 predominou a “dessocialização”
dos riscos; imaginava-se que a saúde pública ofertaria pouco para muitos. Os
que podiam pagar direta ou indiretamente não viam sentido em um sistema
universal. Ainda que houvesse discordâncias, as políticas foram orientadas para
o controle de gastos. As empresas de planos passaram a restringir coberturas; e
os empregadores, a custear parcialmente os benefícios assistenciais. Os
orçamentos domésticos das classes médias americanas foram pressionados com
pagamentos de medicamentos e atenção médico-hospitalar. Desempregados e mesmo
trabalhadores vinculados a planos de saúde experimentaram negação de
assistência por terem doenças preexistentes. Paradoxalmente, as estratégias
para regulamentar despesas não impediram a escalada de custos com saúde. Nos
anos 2000, as antigas certezas não faziam mais sentido. O Obamacare, aprovado
em 2010, expressou, por um lado, a ruptura com as premissas sobre as vantagens
de sistemas orientados pelo mercado e, por outro, a decisão de manter, ainda
que sob novas premissas contratuais, alianças com as poderosas empresas
setoriais.
Rever a reforma, propositalmente ambígua, do sistema de
saúde americano não é fácil, discursos sobre redução da intervenção estatal na
saúde passam ao largo de problemas concretos como a ameaça de perda de
cobertura, inclusive para pessoas doentes de renda média que não poderiam pagar
planos e remédios. As propostas aventadas por republicanos de fornecer vouchers
(valor limitado) e créditos fiscais para serem utilizados para a compra de
procedimentos ficam muito aquém do equacionamento democrata de inclusão e de
mudanças nos métodos de remuneração voltados à saúde e qualidade. O nome
oficial da lei, The Affordable Care Act (ACA), não pegou. Os opositores a
apelidaram de Obamacare com a intenção de personalizar uma suposta antipatia à
extensão das coberturas. Agora, dizem que os democratas estão se apropriando
individualmente de um processo social.
O destino do Obamacare será definido pelo confronto
político, envolvendo não apenas partidos políticos, mas também os
recém-segurados e as corporações financeiras. O que e quem sobreviverá é
incerto. Não longe do campo de tiro ao Obamacare, aqui no Brasil, os
retrocessos sequer foram dimensionados. A desativação do SUS, de instituições
federais e estaduais de ciência e tecnologia e da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro tem sido célere. A revogação do Obamacare será um passo atrás. O
desprezo pelas nossas instituições de proteção social e pesquisa é
posicionamento político velado, a concordância com a dissipação irresponsável
dos imensos esforços de brasileiros dedicados à igualdade e à modernização. O
que e quem sobreviver terá que reconstruir políticas públicas dos escombros.